sexta-feira, 1 de maio de 2015

Um comunista no STF?


Muitos poderão pensar que a expressão *comunista* do título é uma metáfora ou uma hipérbole, como muitos liberais costumam referir-se aos esquerdistas. Nesse caso, infelizmente, estou usando o termo no seu sentido literal para definir a ideologia do futuro ministro do Supremo Tribunal federal, Luiz Edson Fachin, recém indicado para o cargo pela presidente Dilma Rousseff.

Desde a indicação, tenho lido vários artigos do professor Fachin disponíveis na internet. Foquei menos nos textos sobre direito de família e mais naqueles que falam de direito de propriedade, especialmente os voltados para a análise da famigerada “função social da propriedade”, que parece ser uma obsessão do ilustre jurista, não por acaso um dedicado advogado das causas do Movimento dos Sem terra, conhecido pelas indefectíveis invasões de propriedade.

Infelizmente, o que encontrei foram diversos textos de linguagem francamente marxista, malgrado muitas vezes rebuscados pelo português empolado que caracteriza muitos juristas pátrios. Nesses textos, percebe-se claramente a preocupação preponderante do autor em tornar realidade, principalmente através da ação ativa do Poder Judiciário, o princípio constitucional que subordina o direito de propriedade privada à sua “função social”. Fachin chega a defender, citando Cortiano, que a “função social da propriedade passa pelo redimensionamento mesmo do direito de propriedade, e não mais como um limite aposto aos poderes proprietários”.

O Dr. Fachin parece às vezes inconformado com a leitura diferente da dele que a maioria faz dos princípios constitucionais de 1988, notadamente aquele que se refere à função social da propriedade, que parece ser, pelo menos na sua visão, o princípio basilar daquela Carta. Num artigo de 2011, por exemplo, ele lamenta que “no decorrer deste caminhar, o descompasso entre o projeto (aquilo que se versou) e a obra (aquilo que, a partir do discurso, se concretizou). Acabou-se por não superar, na vagarosa história brasileira, o antigo óbice relativo ao distanciamento entre a “proclamação discursiva das boas intenções e a efetivação da experiência” granjeada nestas duas décadas.

Do descompasso entre o prodigioso discurso principiológico e a realidade que o circunda, se extrai uma importante lição. Materializar a comunhão da teoria e da práxis na prospectiva efetivação de nossa Constituição é tarefa que ainda não se cumpriu”.

O texto abaixo é parte de um artigo maior, publicado por Fachin em 2013, em co-autoria com outros dois autores, e encontra-se disponível na página do seu escritório de advocacia. Os leitores poderão atestar, através da sua leitura, que não exagero ao chamá-lo de comunista. Os grifos são meus.

O que se nota no cenário rural brasileiro (…) é que o modo de produção capitalista que se consagrou no século XX foi aquele baseado pela necessidade crescente de apropriação de bens e riquezas. Como bem assentou Carmem Lucia Silveira Ramos, “o exercício de direitos ficou vinculado à apropriação de bens, restando, à maioria da população, como direito único, o de obrigar-se, vendendo sua força de trabalho” . Deste modo, o direito se presta a possibilitar essa lógica de apropriação e acumulação.

Não é por outro motivo que as Cartas Constitucionais que se seguiram no Brasil, até a de 1988, respeitando o locus espaço-temporal em que se situam, abordaram a propriedade, incluindo-se aí a propriedade rural, como res acumulável, objeto que tem seu fim na mercadorização.

O instrumental jurídico que respalda essa exacerbação da desigualdade, somente passa a ganhar novos contornos com o surgimento de uma nova perspectiva teórica do direito, que caminha pari passu com a tentativa (embora, a nosso ver frustrada, como tentaremos demonstrar adiante) de uma efetiva democratização da sociedade brasileira, tendo como alicerce a Constituição da República de 1988.

Esta nova Carta Constitucional traz em seu bojo a tentativa de produzir alterações estruturais, propondo uma reforma econômica e social de tendência nitidamente intervencionista e solidarista. Estas mutações refletem em todo o sistema jurídico pátrio, atingindo de maneira frontal o tratamento jurídico da propriedade.

Dentre os elementos presentes na carta constitucional que repercutem na seara da propriedade estão a sua funcionalização e repersonalização. Com o esboço desse novo modelo de Estado buscado pela Constituição, a propriedade passa a exibir uma real e definida função social, que tem como base a proteção dos socialmente excluídos
. Neste sentido, apregoa Eroulths Cortiano Júnior:

A visão da função social da propriedade passa pelo redimensionamento do mesmo direito de propriedade, e não mais como um limite aposto aos poderes proprietários. A concepção de que a propriedade deve ser utilizada de forma solidarística incide sulla structura tradizionale della proprietà dall’interno, a tal ponto que se pode sustentar que a função social é a razão mesma pela qual o direito de propriedade é atribuído a um certo sujeito. Com a função social, a idéia de condicionamento de um direito a uma finalidade, geralmente adstrita ao direito público, ingressa no direito privado e conforma o direito de propriedade.

Traço fundante desse novo paradigma é o ideário de função social, que desloca da seara exclusivamente de ordem econômica, para o capítulo dos princípios e garantias constitucionais fundamentais.

Há, com a Constituição Federal de 1988, um rompimento teórico com o “standart” privado clássico, abrindo as portas para uma reforma que ainda não se realizou.

Neste novo paradigma imposto pela constituição é que se enquadra o chamado “Direito Civil Constitucional”. A (re)leitura constitucional do Direito Privado mostrou-se e ainda mostra-se importante para a compreensão da superação do sistema clássico introjetado no tripé clássico do direito civil. A ascensão do “ser” em relação ao “ter” flui para a construção teórica do Direito Civil, atingindo também a tutela jurídica da propriedade.

O que se percebe, na realidade, é que parte importante da doutrina passa a pensar em possibilidades para a construção de um direito que liberte. Na descrição crítica da edificação do Direito Civil nucleado, tradicionalmente, em torno do patrimônio, e na busca de uma nova concepção de patrimônio que coloque no centro das relações jurídicas e pessoal e seus respectivos valores personalíssimos, especialmente, dentre eles, aquele jungido de uma existência digna.

Este giro subjetivo do fenômeno jurídico, aqui tratado a partir da perspectiva do direito à propriedade, importa as noções de despatrimonialização, pluralismo e solidariedade.

Na perspectiva jurídica, é para as pessoas que o direito foi feito. Surge assim, como destaca Eduardo Novoa Moreal, “(…) a imagem do homem coletivo, pertencente a uma coletividade viva e integrada, conforme uma ordem socialmente orientada, na qual se tende a nivelar os indivíduos em um plano que permita, nas melhores condições possíveis, o maior desenvolvimento de todos eles.” Compreendem-se, assim, como fundamentais as palavras de Jesús Antonio de la Torre Rangel:

El tema Del derecho de la propriedad está, como decíamos, em relacíon com los pólos Del “ser” t el “tener”, muy especialmente em el de la propriedad de los medios de producción. La explicación que nos proporciona Antoncich (1088:8) es clara: El trabajo supone instrumentos, materia prima, productos; es una cadena del ‘tener’ cosas a fin de satisfacer lãs necessidades del ser. Pero lo importante no es el tener de las cosas, sino el ser de las personas. De ahí la esencial perversión humana de sobrevalorar la propriedad y el tener de las cosas, más que la vida e el ser de las personas. La más triste expresión de este desorden es la sociedad que antepone el capital al trabajo, lo que equivale a decir, el tener sobre el ser.

Neste influxo, faz-se mister olhar o direito e, conseqüentemente, a propriedade, sob a ótica do sujeito concreto, ser humano reconhecido em sua concepção ética e digna como valor supremo a ser protegido.

[…]

Ancorados nesses pressupostos que lançamo-nos à caminhada jurídica de afirmação da vida no campo, com a certeza de que as mudanças necessárias são possíveis desde que ousemos sonhar com um outro porvir, constitucionalmente mais adequado. Subscreve-se, por fim, lição necessária para seguir em frente:

As mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas, a consciência disto mesmo não tem que matar nosso direito à utopia e nosso direito ao sonho. Porque a utopia ajuda a fazer o caminho. Porque sonhar é preciso, porque o sonho comanda a vida.





Por João Luiz Mauad

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