terça-feira, 5 de maio de 2015

Aos teologuinhos de plantão


Ao simplificar o conceito, o novo Código de João Paulo II, ao contrário do que dizem alguns sapientíssimos intérpretes, não isentou de excomunhão os católicos colaboracionistas, mas apenas reiterou o óbvio: não existe católico pró-comunista que não seja apóstata.


A coisa mais difícil, neste país, é encontrar um liberal, conservador ou similar que entenda, mesmo de longe, o que é comunismo. Outro dia, um blogueiro católico jurava que o novo Código de Direito Canônico já não condena à excomunhão automática os católicos que colaborem com o movimento comunista, mas só aqueles que “professem o materialismo dialético”, pois só neste caso haveria apostasia, motivo de excomunhão. Sem entrar no mérito da questão teológica aí envolvida, e analisando a coisa só do ponto de vista semântico e estilístico, vejo nessa afirmativa o tipo mesmo da linguagem falsificada em que a total ignorância de um problema se camufla de ciência superior e até de doutrina sacra.

A mim me parece auto-evidente que nenhuma decisão papal pode ser interpretada, por um católico, de tal maneira que leve a conclusões absurdas e autocontraditórias.

“Professar” uma doutrina é declarar publicamente que se acredita nela. Revirem as obras de Marx, Lênin, Stálin e Mao Dzedong e não encontrarão semelhante declaração de fé. Eles expõem o materialismo dialético, aplicam-no à solução de problemas filosóficos e à condução da estratégia revolucionária, mas em nenhum momento o “professam”, no sentido em que o cristão professa a fé em Jesus Cristo e o muçulmano nos ditames do Corão. Só se pode “professar” o que é matéria de fé. Se um comunista “professasse” o materialismo dialético, estaria negando, no ato, o seu estatuto de teoria científica objetiva, que é o fundamento da sua respeitabilidade para a mente comunista. Declarar a validade científica de uma teoria não é “professá-la”. Um sujeito pode perfeitamente dizer: “O materialismo dialético é a mais válida explicação da História” sem poder, por isso, ser acusado de “professá-lo”, pois sua afirmativa vem na clave da veracidade científica e não da fé.

De fato, a expressão “professar o materialismo dialético” não tem sentido nenhum. Se o correspondente artigo do Código de Direito Canônico pudesse ser interpretado nessa direção, aplicá-lo seria impossível. Ele próprio estaria se declarando letra morta.

Em segundo lugar, quem disse que o materialismo dialético é uma doutrina formulada e pronta de uma vez para sempre, como os Dez Mandamentos, o Credo católico ou os Cinco Pilares do Corão, que se possa, sem ambigüidades, “professar” ou deixar de professar?
Tanto os textos clássicos de Marx e Lênin quanto os seus sucessivos intérpretes marxistas, bem como a experiência histórica de mais de um século e meio demonstram que o materialismo dialético não vem pronto, mas se cria e se recria no processo da “praxis”, reformulando-se ao ponto de se converter, por vezes, no seu contrário, negando-se como teoria para afirmar-se como ação revolucionária que, por sua vez, retroage sobre a teoria, revivificando-a sob nova formatação.

O exemplo mais eloqüente dos últimos tempos é Ernesto Laclau, que, em busca de uma estratégia revolucionária mais eficiente, nega na base a teoria marxista da “ideologia de classe”, afirmando que “a propaganda revolucionária cria a classe que ela vai representar”. É isso uma crise do marxismo? Ao contrário: é uma prova da sua capacidade proteiforme de renovar-se como praxis.

Não existe portanto um materialismo dialético que possa ser “professado”. Só há um que pode ser vivenciado, posto em ação, praticado -- e praticá-lo, com ou sem nome, é tudo quanto é preciso para que um indivíduo, católico ou não, se caracterize como seu servidor fiel.

Por fim, é possível servir ao comunismo sem tornar-se “materialista dialético”? É absolutamente impossível. Toda a estratégia, cada ação do movimento comunista é praxis materialista dialética. Não há nada, em qualquer iniciativa ou empreendimento comunista, que seja outra coisa. Qualquer ação ou palavra dita em favor do comunismo – com ou sem esse nome – está de antemão englobada e absorvida na praxis segundo a mais requintada dialética materialista. Foi por isso que, nos seus esclarecimentos acrescentados em 1966 aos decreto de 1947 em que Pio XII condenava à excomunhão automática os católicos que colaborassem com o comunismo, João XXIII, com presciência admirável, enfatizou que a punição se estendia mesmo a entidades que não fossem abertamente anticristãs, que, ao contrário, se apresentassem como cristãs, mas que na prática fortalecessem o movimento comunista.

Ao simplificar o conceito, o novo Código de João Paulo II, ao contrário do que dizem alguns sapientíssimos intérpretes, não isentou de excomunhão os católicos colaboracionistas, mas apenas reiterou o óbvio: não existe católico pró-comunista que não seja apóstata. Se o é com plena consciência ou meio às tontas, se portanto está excomungado ou apenas resvalou na excomunhão, é algo que só a Santa Sé pode decidir. Mas esperar que um sujeito “professe” o materialismo dialético para só então condená-lo reduziria o tribunal à completa impotência e aquele artigo do Código a uma palhaçada, a uma autorização lavrada nos seguintes termos: “Seja materialista dialético o quanto queira, só não diga que é.”





Por Olavo de Carvalho

Nenhum comentário: