Os descaminhos da América Latina são vários. Todos levaram os países para longe da democracia como a conhecemos. Houve golpes de estado, caudilhismo, coronelismo, renovação sucessiva de mandatos, partidos que ficaram décadas no governo depois de ocupar e corromper o aparelho de estado. O poder foi tomado em nome do povo, mas em favor de alguns foi exercido.
No México, o PRI passou 70 anos no Palácio. Havia eleições periódicas, mas não eram democráticas. O partido infiltrou-se na máquina pública, ocupando cargos estratégicos e se espalhando como um polvo cujos tentáculos grudaram nos órgãos da administração e nas empresas públicas. A corrupção financiou a permanência. O estado deixou de ser dos mexicanos e passou a ser do partido. A imprensa foi cerceada através do controle ao papel importado. O acesso à matéria-prima conseguiu matar por muito tempo a liberdade de expressão. Quando novos jornais apareceram e as oposições conseguiram se organizar, houve a salutar alternância do poder. Agora o PRI voltou renovado. Na oposição, se oxigenou e promete não repetir os velhos métodos.
Na Venezuela, depois de um período de governos oligárquicos que lembravam o Brasil da Primeira República, o coronel Hugo Chávez assumiu o poder pelo voto. Ele havia tentado chegar ao Palácio Miraflores em cima de tanques. Iniciou-se, então, a era do chavismo.
A democracia foi sendo minada na Venezuela. A imprensa sofreu ataques. O presidente Hugo Chávez, em comícios, declarava alguns jornalistas como inimigos, citando seus nomes e os ameaçando. Cerceava veículos de imprensa que não lhe faziam a corte. Militantes agrediram jornalistas e órgãos de comunicação seguindo a incitação do líder. Em reportagem que fiz na Venezuela, em 2003, vi cenas, gravadas e ao vivo, de não esquecer. A lei de controle da imprensa demoliu a liberdade. Emissoras de rádio e TV e os jornais foram cerceados política e economicamente. Alguns foram fechados. Outros, encurralados. Por fim, os últimos, comprados por empresários vassalos.
Além da imprensa, outras instituições que precisam ser independentes para que a democracia mereça esse nome, como o Congresso e a Justiça, passaram a orbitar em torno do poder presidencial. Na Justiça, foram escolhidos ministros de tribunais superiores que servissem ao projeto chavista. Os plebiscitos e referendos, que democracias sólidas usam para consultar a opinião dos cidadãos, foram distorcidos para serem o caminho de dar mais poder ao governante. O Congresso ocupado pela maioria chavista abriu mão de suas prerrogativas através de leis habilitantes, que delegam ao executivo o poder de legislar. A empresa de petróleo foi ocupada por militantes e ordenhada sistematicamente para extrair o dinheiro que irriga os agentes políticos do chavismo. A estatal com as maiores reservas da região e uma das mais importantes do mundo perdeu capacidade de investir e de aumentar sua produção. Políticas sociais para reduzir a vasta pobreza mitigaram o sofrimento dos pobres, mas com o alto preço de recriação do coronelismo clientelista. Foi refeito o voto de cabresto através da ameaça aos pobres de perder o que deveria ser transferido como direito do cidadão. Por muitas artimanhas, o autoproclamado socialismo do século XXI refez as cenas descritas no clássico de Vitor Nunes Leal, “Coronelismo, Enxada e Voto”. Por causa da urbanização, só não havia a enxada. Mas o voto passou a ser a contrapartida do assistencialismo.
Com alterações locais, o modelo foi seguido na Bolívia e no Equador. Foram aprovadas leis que limitavam o papel da imprensa. A Argentina também tem usado essa trilha de cercar os jornais que não são amigos. Em alguns países o projeto de eliminar a opinião divergente está mais adiantado que em outros. Na Bolívia, Evo Morales inicia o terceiro mandato já falando do quarto.
Há muitos descaminhos na América Latina. O golpe militar foi usado no século passado. Os métodos de conspirar contra a democracia agora são outros. Qualquer semelhança poderemos evitar no Brasil fortalecendo as instituições e preservando o contraditório. Não estamos condenados a repetir os erros dos vizinhos; as escolhas deles devem nos servir de alerta. Nós não podemos cometer o erro da ingenuidade.
Por Míriam Leitão
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