Uma das situações econômicas mais preocupantes é a de déficits gêmeos, quando tanto as contas externas como o lado fiscal estão no vermelho. O país importa mais do que exporta, e o governo gasta mais do que arrecada. Por que isso é tão perigoso?
Sempre gosto de comparar o estado ou um país com um indivíduo, pois fica mais fácil para o entendimento. Afinal, o que é um país além do somatório de indivíduos? E o que é o estado senão um instrumento para administrar os recursos públicos obtidos por nossos impostos?
Pensemos, então, num indivíduo: ele “exporta” seus bens e serviços, praticando trocas voluntárias no mercado, e “importa” de outros, comprando bens e serviços produzidos por terceiros. O que ele exporta serve para pagar pelo que importa.
Se ele exportar mais, está acumulando poupança, que será emprestada para outros em troca de um rendimento. Não necessariamente é positivo sempre exportar mais, como acreditam os mercantilistas. Podemos pensar em um jovem em fase de ascensão profissional, que precisa investir mais em conhecimento para prosperar na carreira. Nessa fase jovem, fará sentido ele tomar poupança emprestado e investir em coisas produtivas.
Claro que se ele importar mais, tomando emprestado de outros, apenas para consumir mais luxo, em vez de melhorar sua produtividade, ele estará bancando o playboy irresponsável e terá dificuldades à frente.
Do lado fiscal, é mais simples ainda: ele ganha um salário e tem seus gastos. Se estes são maiores do que aquele, ele precisará se financiar com terceiros também, eventualmente entrando no cheque especial ou caindo nas garras de um agiota.
Aqui há uma diferença básica entre indivíduo e estado: este possui a prerrogativa de imprimir dinheiro ou moeda paralela, via crédito de bancos públicos. É como um indivíduo com uma máquina de falsificar reais. Se ele abusar desse poder, irá prejudicar os outros, gerando inflação. Haverá mais demanda por bens do que oferta, já que a demanda foi artificialmente criada.
Toda essa introdução resumida foi para chegar na conclusão: um país que mergulhou nos déficits gêmeos, com rombo tanto nas contas externas como no orçamento estatal, terá de contar com o financiamento de outros países, ou indivíduos de outros países. Será cada vez mais dependente da poupança externa.
O problema é que todos os credores estarão avaliando essa situação e julgando nossa capacidade futura de pagamento. Um gastador crônico costuma ter o nome sujo na praça. Para tomar dinheiro emprestado, acaba tendo que pagar altas taxas de juros.
A presidente Dilma minimizou nosso quadro, comparando o Brasil com países desenvolvidos em condições bastante diferentes, como o Japão. Disse que nossa dívida líquida é de apenas 35% do PIB, ignorando que temos uma dívida bruta acima de 60%, e que ninguém mais olha para a líquida, pois conhece os malabarismos contábeis e o orçamento paralelo via BNDES. O que importa é o risco total, maior hoje por conta da dívida bruta do governo.
A presidente não levou em conta, ainda, que os países ricos gozam de credibilidade, confiança nas regras do jogo, possuem muito mais ativos, e podem se financiar pagando taxas de juros bem menores. Já o Brasil é como um ex-alcoólatra que saiu da clínica de reabilitação há alguns anos, e começa a beber socialmente, cada vez mais, prometendo ter tomado juízo. Até quando pode abusar da sorte?
O editorial do GLOBO de hoje alerta para a proximidade desse limite, afirmando que a contabilidade criativa chegou ao seu apogeu com o governo tentando rasgar a responsabilidade fiscal e fingindo que não é nada disso. Conclui:
Não será possível começar o segundo mandato nesse quadro calamitoso. É urgente que a presidente Dilma componha sua nova equipe econômica com nomes de reconhecida credibilidade e capacidade para pôr a casa em ordem. A economia brasileira está na eminência de ser rebaixada na classificação de agências internacionais de avaliação de risco, ficando a um passo de perder o grau de investimento conquistado a duras penas. A cada rebaixamento, ficará mais difícil financiar os déficits gêmeos, das contas externas e das finanças públicas, o que, por sua vez, se refletirá em mais inflação e menos crescimento econômico.
Exatamente: para fechar os rombos dos déficits gêmeos, o governo terá de produzir cada vez mais inflação e pagar juros maiores, jogando a economia de vez em recessão e mesmo assim com alta inflação. É o custo da heterodoxia, que trata aumento de gastos públicos como uma solução para todos os males sociais, sem levar em conta os limites impostos pela realidade econômica.
Quando Lula assumiu em 2003, a situação também era bem delicada, em boa parte devido ao próprio medo dos investidores com o PT no poder e suas velhas promessas heterodoxas. Lula soube abandonar esse passado e adotar postura mais pragmática. Nem ele nem o médico Palocci eram economistas, e souberam ignorar as receitas dos economistas da Unicamp ligados ao PT.
Carlos Alberto Sardenberg, com sua forma didática, resume bem essa trajetória, e faz uma comparação com a situação atual de Dilma. Lembra que o pragmatismo de Lula foi duramente combatido pelos aliados mais próximos da presidente, e por ela mesma, que sempre tentou derrubar Palocci e Meirelles. Uma vez no poder, teve liberdade para adotar seu próprio modelo. Deu no que deu. Conclui Sardenberg:
Entra Dilma e começa a derrubar os pilares daquela base macroeconômica. Não anunciou que as metas mudavam, mas fez a coisa. Dizia ter compromisso com a meta de inflação de 4,5%, mas deixou-a correr para 6,5%. Dizia ter compromisso com a estabilidade das contas públicas, mas aumentou o gasto sistematicamente, enquanto reduzia o superávit primário, até transformá-lo em déficit. O resultado dessa virada é isso aí: inflação alta, juros altos e estagnação.
Por necessidade, de novo, Lula voltou a campo. Quer levar Henrique Meirelles para o Ministério da Fazenda, com poderes para comandar e mudar a política econômica. Quer que Dilma 15 seja igual Lula 2003. Dilma resiste. Exatamente a mesma disputa de 2002. Com uma diferença: o presidente era Lula.
Agora é Dilma uma vez mais. Todos clamam por bom senso, até a ex-ministra da Cultura, Marta Suplicy, que pede mudança de equipe e resgate da credibilidade perdida. É o racha entre “dilmismo” e “lulismo” dentro do próprio PT. São as velhas forças ideológicas lutando contra o maior pragmatismo daqueles que, não sendo economistas, aprenderam ao menos alguma coisa com a experiência.
Quais são as chances de Dilma efetivamente levar a sério os alertas dos ortodoxos que criticam os déficits gêmeos? Há quem acredite que, no final, o bom senso irá prevalecer. Não tenho tanto otimismo. Acredito no poder da ideologia, que pode cegar suas vítimas para quaisquer fatos contrários e produzir dissonância cognitiva. E jamais subestimo a intransigência dos crentes…
Por Rodrigo Constantino
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