Foram apenas palavras - ainda que as mais surpreendentes que a presidente Dilma Rousseff terá pronunciado em muito tempo. Na quinta-feira, dois dias depois de se reunir com o mentor Luiz Inácio Lula da Silva, o que decerto contribuiu em não pouca medida para algumas de suas inesperadas afirmativas, Dilma deu uma entrevista de duas horas aos quatro principais jornais brasileiros, cumprindo um compromisso assumido em seguida à reeleição. Pela primeira vez, ela abriu uma fresta para se admitir a possibilidade de que não será, nos próximos quatro anos, cópia fiel do que tem sido - uma combinação tóxica de soberba, dogmatismo e incompetência. Não é nada, não é nada, a governante que se comportava como a proverbial rainha da cocada preta do léxico popular pelo menos agora usa a expressão para dizer como não devem agir os ganhadores de uma eleição. Com algum otimismo, pode soar como indício de autocrítica.
Em matérias substanciais reconheceu - ainda que no limbo das generalidades - que terá de fazer "o dever de casa" para enfrentar a inflação. Salvo melhor juízo, não se recorda de Dilma ter recorrido alguma vez a esse termo, de emprego corrente no jargão ortodoxo, segundo o qual a arrumação das contas públicas é condição necessária, embora não suficiente, para o crescimento sustentado da economia. Isso dito, literalmente, a reeleita deu um pequeno passo em direção ao mundo real, ao admitir, além do aperto imperativo do controle da inflação, que existem restrições fiscais para fazer "a política anticíclica que poderia ser necessária agora" - traduzido do jargão, significa gastar mais quando as coisas vão mal, o que é o caso de um país que deverá fechar o ano com um PIB crescendo menos de 1%. E assinalou que combaterá a carestia com a arma fiscal, não com a monetária - segurando e racionalizando gastos, de preferência a aumentar os juros.
Derramando um saleiro nas feridas petistas que ela abriu de caso pensado com o aparente aggiornamento de suas ideias, respondeu no melhor estilo Dilma a uma pergunta sobre a hidrófoba resolução aprovada três dias antes pela Executiva Nacional do PT - que declarava guerra de extermínio à oposição e à liberdade de imprensa, e ainda deixava escancarada a pretensão de tomar de assalto o Banco Central. Ela até que poderia ter se limitado a retrucar, da forma convencional como fez, que não representa o PT, mas a Presidência, e que não é presidente da agremiação, mas "dos brasileiros". Houve situações em que o seu próprio patrono Lula disse algo assemelhado. Mas a afilhada escolheu ir além. "A opinião do PT é a opinião do partido, não me influencia", fulminou. De notar que ela nem sequer amenizou a estocada, dizendo respeitar os pontos de vista da sigla pela qual chegou ao Planalto.
Quem comprar as palavras de Dilma pelo seu valor de face poderá, ou não, fazer um bom negócio no mercado de especulações sobre o que será o seu novo período de governo. O desembolso será de pouca monta: o farto retrospecto da presidente respalda, ainda, o ceticismo em relação ao que virá depois de 1.º de janeiro. Mas a leitura da íntegra de sua entrevista, claramente concebida como uma minuta do discurso de posse, deixa no ar a sensação - não mais do que uma sensação - de que a entrevistada está "na dela", de maneira diferente daquela a que acostumou os brasileiros a vê-la. Quando ela explica, por exemplo, que o diálogo que prega não é algo "metafísico", mas a busca de pontos em comum "que podemos levar juntos" em áreas específicas de governo, como a educação, quem sabe não seja mais do mesmo. O óbvio problema é a ausência de fatos que corroborem essa generosa avaliação.
Pior é a deliberada demora da presidente em apresentá-los, supondo que existam. Enquanto o País, com justos motivos, espera para ontem o nome do sucessor do submisso Guido Mantega no Ministério da Fazenda, Dilma informa que só anunciará o escolhido depois de regressar da reunião do G-20, a começar no próximo sábado, em Brisbane, na Austrália. E não será de imediato, como avisou com perversa ênfase, "mas nas semanas seguintes - com vários esses". Ela simplesmente não atina com a gravidade do momento econômico.
Fonte: O Estado de São Paulo (editorial 09/11/2014)
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