segunda-feira, 1 de junho de 2015

A Magna Carta, os benefícios de se ter governantes incompetentes, e uma lição para os brasileiros


João Sem-Terra tinha uma família conturbada. Seu pai, Henrique II, era um mulherengo incontrolável que teve pelo menos dez filhos fora do casamento. Leonor, sua mãe, foi casada com rei francês Luís VII, com quem teve duas filhas, tendo depois mais oito com Henrique.

Leonor falava oito línguas, conhecia matemática, filosofia e astronomia, e entrou para a história como uma das mulheres mais poderosas e cultas da Idade Média. Acredita-se que ela já tinha um caso com Henrique enquanto ainda era esposa de Luís VII.

Leonor casou com Henrique em 1152, separando dele em 1170, e foi morar na Aquitânia, sul da França. Em 1173, Leonor e os três filhos mais velhos (Godofredo, Henrique e Ricardo Coração de Leão) lideraram uma revolta contra Henrique, com apoio do ex-marido Luís VII, mas foram todos derrotados. O rei inglês culpou Leonor pela traição, mandando a ex-mulher para a prisão e depois perdoando os filhos. João ficou ao lado do pai o tempo todo e virou seu preferido. O apelido de "João Sem-Terra" vinha do fato de ele, por ser o filho mais novo, não ter muitas terras para herdar.

Ricardo Coração de Leão foi educado pela mãe na cultura francesa, nunca aprendeu a falar inglês, detestava o pai e não se identificava com a Inglaterra, a despeito da idolatria que o país tem por ele até hoje. Com a morte de Henrique II em 1189, Ricardo assume o trono, raspa os cofres da coroa britânica, liberta Leonor do cárcere e parte para as Cruzadas.

Ricardo deixou a Inglaterra sem a presença de um rei e com impostos altíssimos para sustentar sua guerra, o que gerou enorme descontentamento na Corte. Durante a viagem, Ricardo nomeia o sobrinho Artur, filho de Godofredo, como sucessor, mas morre flechado numa batalha em 1199. João manda prender Artur e assume o trono.

O agora Rei João, personagem da lenda de Robin Hood como Ricardo, não inspirava respeito ou admiração do povo, que colocava em dúvida sua legitimidade e não engolia a prisão e o sumiço inexplicável de Artur, que nunca mais foi visto.

Os nobres estavam cansados da família de João, uma dinastia real recente que tinha começado com seu pai Henrique e que trazia no pacote guerras caríssimas e um tratamento muitas vezes distante e negligente com o país.

O novo rei fez por merecer o ceticismo e colecionou uma série espetacular de fracassos políticos e militares. Perdeu diversas guerras, que geraram enormes prejuízos para a coroa, e teve que aumentar ainda mais os impostos. Para completar, bateu de frente com o Papa e foi excomungado.

Os nobres resolveram dar um basta e agir, cercando Londres e forçando João a assinar um acordo no dia 15 de junho de 1215, a única medida para que não fosse deposto.

Neste dia, o mundo conhecia um documento que formalmente colocava limites por escrito na monarquia em relação não só à Corte, mas também a todos os súditos.

A Magna Carta simbolizou um dos poucos momentos na história em que um governante aceitou perder poderes e colocar limites no que podia decidir ou fazer. O documento trazia novidades surpreendentes e fazia da coroa britânica um caso único na Europa.

A mãe de todas as constituições impedia o rei de criar novos impostos ou leis sem a aprovação de um conselho formado por representantes da corte. Um dos artigos do documento também dizia: "nenhum homem livre será preso ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém agir contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra."

Henrique II, pai de João, já havia sido pioneiro ao unificar o sistema jurídico do país baseado na common law (leis consuetudinárias), mas foi a Magna Carta que criou as bases para aquilo que entendemos por governos limitados. Como resultado da inépcia de João Sem-Terra no trono, a Inglaterra inaugurava um tipo de regime em que mesmo os reis deveriam se submeter a um conjunto de regras claras, escritas e publicamente divulgadas, num documento maior e mais importante do que eles, que hoje chamamos de constituição.

Totalitarismo e hegemonia

No clássico "Poder, a história natural do seu crescimento", Bertrand de Jouvenel descreve o desenvolvimento dos sistemas de governo dessa época até os estados totalitários do século XX, aqueles que atingiram o poder "total" e nos quais é "tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado".

Jouvenel escreveu o livro em 1945, numa época em que o próximo passo do totalitarismo estava apenas começando.

Se a primeira metade do século XX é marcada pelas grandes guerras e pelo surgimento dos estados totalitários, a segunda metade conheceu a forma mais perfeita e sofisticada de controle da sociedade: a hegemonia cultural.

Ao longo do século passado, a guerra militar foi dando lugar à guerra no campo das idéias. As idéias do estatismo e do governo "total" vão aos poucos tomando conta da cultura, da academia e da imprensa ocidental até não terem mais qualquer resistência ou oposição relevantes, com raras exceções.

A hegemonia cultural estatista no Ocidente é de tal ordem que os governos passaram a ter "o poder invisível e onipresente de um imperativo categórico, de um mandamento divino", como sonhado por Antonio Gramsci. A dominação do poder estatal, que foi militar durante séculos, passou para a esfera ideológica, a forma acabada de dominação imaginada por George Orwell em "1984" na qual o pensamento oposicionista é suprimido pelo controle até da linguagem.

Em diversos acontecimentos recentes, especialmente no Brasil, a força da hegemonia cultural estatista se mostrou em todas as cores. A ausência de pensamento alternativo e de lideranças políticas fora do estatismo mostra que a batalha pelos corações e mentes está sendo perdida, e que pouco adianta hoje discutir estratégias eleitorais de curto prazo sem entender que o campo de batalha é também na cultura.

A falta de oposição e de beneficiários das manifestações brasileiras é consequência direta da hegemonia cultural da esquerda e do estatismo. A insatisfação amorfa da população tem um componente revelador, que mostra que hoje o eleitor brasileiro sequer consegue conceber uma forma alternativa de política, e é por isso que a mais importante frente de batalha hoje é a hegemonia da discussão política exercida pelo estatismo em todas as esferas, especialmente a cultural.

É imperativo que a população entenda claramente todos os problemas causados na vida dela pela altíssima carga tributária, pela burocracia, pela intervenção galopante do estado na economia, pela corrupção desenfreada e por um estado mastodôntico impossível de controlar, além das mazelas estruturais da educação, saúde, transporte e tudo mais que atrapalha a vida do cidadão, e que é causado diretamente pelo gigantismo estatal.

É necessário que esse "rei incompetente", o estado, seja cercado e seus poderes limitados. Não falta incompetência, mas ainda falta quem esteja disposto a colocar o rei-estado contra a parede.

Na crise da coroa britânica no tempo do Rei João não havia defensores de ideais democráticos e nem abnegados amigos do povo. A Magna Carta foi uma solução negociada para que a crise não continuasse. Mas o que importa como lição é que o acordo para minimizar os problemas causados pelo rei incompetente foi limitar seus poderes e não meramente trocar o ocupante do trono.

A Inglaterra do século XIII, cansada da negligência, da inépcia, dos altos impostos, dos escândalos, cortou as asas do rei e durante quase mil anos conheceu o crescimento do país que viria a se tornar um império e criar a nação mais próspera e livre do mundo no outro lado do Atlântico.

A diminuição drástica do poder do estado dá certo desde 1215. Essa é a guerra que vale a pena ser travada hoje.






Por Alexandre Borges
Publicitário com diversos prêmios nacionais e internacionais, tendo sido escolhido Profissional do Ano do Brasil pelo Prêmio Colunistas. Ex-executivo de algumas das maiores agências de publicidade do país como JWT, Leo Burnett, Ogilvy e Wunderman, foi também apresentador e comentarista político do programa Assembléia Geral, que foi ao ar na Ideal TV, canal da Editora Abril. Diretor do Instituto Liberal, articulista do Reaçonaria.org, Mídia Sem Máscara e das revistas Vila Nova e Feedback.

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