terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Os 2% que separam a esquerda da direita


Qual a diferença entre direita e esquerda no Brasil? Sejamos precisos na resposta: 2%. A encarniçada batalha eleitoral, o ódio espumante, o ranger de dentes de dentaduras eleitoreiras, tudo se resumia a isto: 2%. Agora, quando a presidente anunciou sua guinada pós-eleitoral (e pós-eleitoreira), uma guinada de 2% à direita, a esquerda que é, assim, bem de esquerda mesmo resolveu protestar e, lógico, fez um abaixo-assinado. Contra os 2%. Esses 2% separam os esquerdistas dos direitistas. No resto, eles estão todos de acordo.

Não, esses 2% nada têm a ver com contagem dos votos. Não os procure nas urnas. Nelas, a diferença entre os dois lados foi um pouco maior: Dilma ficou com 51,64% dos votos, e Aécio 48,36%. Os 2% que separam a esquerda da direita no Brasil moram longe dos sufrágios. Moram numa linha direta entre o Banco Central e o Ministério da Fazenda. Mais exatamente, na meta da inflação. A esquerda mais radical diz, sem dizer com todas as letras, que a inflação pode muito bem ser suportada no patamar dos 6,5%, 6,7% ao ano, em que anda acomodada atualmente. A direita mais monetarista afirma, peremptória, que, se a inflação não for para o centro da meta, para os 4,5%, a nação mergulhará no inferno. E adverte: se a inflação não "convergir" para o centro, aí sim veremos o que é ranger de dentes e ranger de dentaduras.

A ideologia foi reduzida a isto: meta de inflação. O resto é acessório. Enxugamento dos custos do Estado, superávit primário, aperto fiscal e outros palavrões macroeconômicos são ferramentas adicionais para ajudar a segurar a inflação no centro. Tudo o que a direita queria é isso: 2% menos. Tudo a que o governo Dilma cedeu é isto: um recuo de 2%. Quando ela fez o Brasil saber que o novo titular da Fazenda será Joaquim Levy, assinou embaixo dos 2%, adulou a turma do cifrão e enfureceu correligionários mais combativos.

Se você disser que a grita interna do PT contra Levy foi uma birra infantil, chateará uns e outros, mas estará prenhe de razão. O que é a dupla Levy-Tombini, em 2014, se comparada ao par Palocci-Meirelíes, em 2003? Qual a dobradinha mais, digamos assim, neoliberal? Em 2003, ao convocar Henrique Meirelles para o Banco Central, Lula recrutou um banqueiro graúdo, filiado ao PSDB. Foi uma
concessão e tanto ao capital financeiro. Nem por isso, a esquerda bem de esquerda mesmo fez abaixo-assinado. Perto da surpresa representada por Meirelles em 2003, o nome de Levy é fichinha. Com uma carreira na área pública, que inclui cargos-chave na gestão do próprio Lula, além de uma escala bem-sucedida no governo carioca do lulista Sérgio Cabral, Levy não pode ser visto como um corpo inteiramente estranho à cartilha e à planilha do Palácio do Planalto. A diferença entre ele e seu antecessor, Guido Mantega, é apenas - isso mesmo - 2%. Para Mantega, parece que um pouquinho mais de inflação (só 2%) é justificável para manter o mercado ativo e evitar o desemprego (o mantra é bem conhecido). Para Levy, se a inflação seguir com rédeas soltas como vem seguindo, os investimentos vão embora e, aí sim, adeus empregos.

É por isso que Mantega é de esquerda e Levy é de direita, entendeu? Só por isso. Dois por cento. Foi também por isso, 2%, que os tucanos acusavam os petistas de deixar subir o preço da abobrinha, do chuchu, do abacaxi e da batata na feira. Foi pelos mesmos 2%, e não mais do que 2%, que os petistas acusaram os tucanos de querer provocar uma recessão no Brasil. "Eles vão entregar o controle da economia aos banqueiros!", dizia o locutor do horário eleitoral petista, como se cantasse que a Cuca vem pegar. Agora, depois de reeleita, Dilma chama Levy para fazer exatamente o que ela acusava Aécio Neves de querer fazer: domar a inflação com mão firme. Aécio comemorou, num artigo para a Folha de S.Paulo: "Hoje, está mais claro do que nunca que a presidente concordava com os alertas que fiz na campanha sobre os problemas que o país enfrenta". Dilma levou a pecha de ter endireitado. Tudo culpa dos 2%.

Na Revolução Francesa, a diferença entre esquerda e direita era questão de vida ou morte, uma diferença bem mais trágica que reles 2%. Na Revolução Russa, os socialistas queriam estatizar o capital, e o capital queria pôr os socialistas na cadeia. Hoje, os socialistas defendem o mercado com sinceridade (ou mesmo ganância) e, quando vão para a cadeia, normalmente vão porque gostaram em demasia do capital. Nada mais separa a esquerda da direita. Nada, a não ser isto: 2%?





Por Eugênio Bucci

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