Ao negar a necessidade de um ajuste fiscal, ela criou um problema para si mesma caso vença a eleição: se cumpre a palavra, passará por irresponsável - se não cumpre, será acusada de enganar o eleitor.
A multidão em Feira de Santana, na Bahia, mal deixava a caminhonete preta avançar. Depois de baixar na cidade de helicóptero, a presidente e candidata pelo PT, Dilma Rousseff, saiu em carreata na boleia, espremida entre o governador baiano, o petista Jaques Wagner, e o candidato ao Senado, Otto Alencar. Dilma cansou a mão de tanto acenar. Depois fez uma caminhada, cumprimentou todo mundo, abraçou e beijou quem quis. Naquele dia 25 de setembro, depois do revigorante banho de povo, no palanque Dilma aproveitou a ocasião e a plateia favoráveis para tocar num assunto árido, o estado das contas públicas. “Não acreditamos em choque fiscal”, disse. “Vai fazer choque fiscal, vai cortar o quê? Vai cortar programa social? Vai cortar Bolsa Família? Vai cortar subsídio do Minha Casa Minha Vida como estão dizendo? Vão fazer o quê? Choque fiscal é o quê? É um baita ajuste em que se corta para pagar juros para os bancos? Não é necessário.”
Nos dias anteriores, seus adversários Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (PSB) diziam que Dilma escondia a necessidade de o próximo presidente fazer um ajuste nas contas do governo. Isso implica reduzir despesas. Na visão de Dilma e de sua equipe, os gastos do governo são essenciais para incentivar o crescimento - algo que não tem acontecido no Brasil nos últimos anos. Ao contrário: sua política econômica alimentou a inflação e desarrumou a economia. Para escapar de explicações mais complexas, Dilma usou a esperteza política. Amarrou a eventual correção de um defeito de seu governo - a má administração do gasto público - à maldade de eliminar um beneficio popular. Corrigir o gasto público não significa, necessariamente, cortar benefícios como esses. Mas campanhas eleitorais são conduzidas mais pela emoção que pela razão. A conjunção de um palanque, um microfone, uma multidão (arrebanhada artificialmente) e um político em busca de votos produzem um péssimo serviço a quem busca a verdade.
Pressionada pelos adversários na seara econômica, em que tem apresentado os piores resultados de seu governo, Dilma tem, desde o início da campanha, defendido o que fez, atacado propostas alternativas e prometido tirar o país da má situação financeira com a mesmíssima receita que o levou a essa situação. Evita dizer, contra todas as evidências, que o governo reajustará os preços da gasolina ou da energia elétrica. Afirma que não precisará reduzir de modo significativo os gastos públicos para conter a inflação e o nível da dívida pública. Em agosto, segundo o dado mais recente, o governo gastou R$ 10 bilhões a mais do que arrecadou. Foi o quarto deficit mensal seguido. Neste ano, o governo federal prometeu economizar R$ 81 bilhões para garantir que terá recursos para cumprir todas as suas obrigações. Não está nem perto disso. Até agosto, a economia estava em apenas R$ 4,7 bilhões, menos de 6% da meta para o final do ano. Poucos acreditam que ela será cumprida, mesmo se o governo usar e abusar das manobras fiscais executadas nos últimos dois anos pelo Tesouro Nacional e condenadas por organismos internacionais, como adiar gastos, antecipar receitas de bancos públicos e empresas estatais e mudar de critérios para considerar receitas e despesas.
Será possível a Dilma, caso vença a eleição, manter a promessa de não promover um choque fiscal em 2015 e de não mudar a orientação da política econômica? Pelo discurso, há pouca chance de isso acontecer. Seus adversários têm dito que será preciso “desmamar” o empresariado do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Sempre que eles criticam os largos empréstimos, Dilma parte para o ataque: “É um factoide para carimbar no BNDES algo que não deve ser carimbado, que o BNDES privilegia este ou aquele. O banco não faz isso”. Desde 2009, o governo injetou cerca de R$ 400 bilhões no BNDES, para que o banco tivesse caixa para financiar diversos setores. O pretexto era que, com esses recursos, empresas aumentariam seus investimentos, e isso aceleraria o crescimento. A despeito disso, o crescimento do PIB minguou e deverá ficar em torno de 0,7% neste ano.
Dilma será capaz de sustentar em 2015 o que diz em 2014? Ou fará um ajuste fiscal e mudará os rumos? “Dilma não só pode, como deve fazer um ajuste fiscal em 2015”, afirma o cientista político Fernando Abrucio, da Fundação Getulio Vargas. A história recente mostra que isso é plenamente possível do ponto de vista político. Os candidatos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva não disseram que fariam ajustes fiscais nas campanhas de 1998 e de 2002. Depois fizeram. FHC desvalorizou o real em 1999, cortou gastos até os ossos da administração e estabeleceu metas para a inflação. Lula surpreendeu a todos com um forte ajuste fiscal ortodoxo em 2003, contrário às crenças do PT. Ambos fizeram diferente do que se esperava de suas candidaturas por necessidade. Não avisaram antes, por cálculo político. A experiência internacional é diferente: costuma haver coerência entre discurso e prática.
Ao prometer manter tudo como está, Dilma poderá pagar um alto preço pela reeleição. Para o economista Raul Velloso, se vencer, Dilma terá uma segunda-feira bem difícil. Terá de explicar como administrar as contas a um mundo que desconfia de sua capacidade. Sua missão será convencer os agentes econômicos de que tem um plano consistente e nomear um ministro da Fazenda que inspire confiança. “Alguém que tenha condições de trabalhar com as adversidades”, diz Velloso. “O ministro (Guido Mantega) foi demitido por Dilma (ela já anunciou que ele não estará em 2015) e ninguém notou a diferença.”
O segredo de Dilma, até agora, está nos detalhes do que fala. De acordo com assessores próximos, quando diz que não fará ajuste fiscal, ela deixa claro que não cortará programas sociais. Isso não significa que não haverá ajuste. Quando defende os empréstimos do BNDES, não quer dizer que eles continuarão na mesma escala de hoje; nem que terão condições tão vantajosas; nem que a taxa de juros será tão mais baixa que a taxa básica. Em pouco tempo, nuances como essas serão usadas para justificar mudanças em relação ao discurso. Dilma conta com a forte elasticidade da tolerância nacional para ir contra o que disse até agora. “O custo político (de contrariar promessas) não é muito alto”, diz Abrucio. Após a eleição, o governo faz o que quer em seu primeiro ano de mandato, com a ajuda do Congresso. Dificilmente Dilma não cumprirá o ritual num eventual segundo mandato.
A experiência nacional é oposta à de países com instituições mais sólidas e um ambiente político mais civilizado. Na campanha presidencial de 2008 nos Estados Unidos, Barack Obama prometeu retirar as tropas americanas do Afeganistão e do Iraque. A um alto custo, Obama cumpriu a promessa. Hoje vive o dilema de combater o grupo terrorista Estado Islâmico sem invadir novamente o território iraquiano. Eleito após a crise financeira mundial, o francês François Hollande prometeu mais benefícios sociais e um imposto para taxar grandes fortunas. Os milionários franceses se mudaram para a Bélgica. As contas públicas não melhoraram, e Hollande não pode se contradizer e tomar medidas mais duras para cortar gastos por causa de suas promessas. Os compromissos são sérios. No Brasil, a sinceridade eleitoral é considerada suicida. Dilma e Aécio não divulgam seus programas de governo para evitar que suas ideias sejam atacadas. O segredo nacional é não dizer o que será feito.
Por Murilo Ramos e Leandro Loyola
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