domingo, 26 de outubro de 2014

Amanhã, recomeçamos

Foi uma longa batalha que não só dividiu o país como dividiu amigos 



Mais um domingo, o último de outubro. Hoje é dia. Foi uma longa batalha que não só dividiu o país como dividiu amigos. A partir de amanhã, é hora de falar em reconciliação. Individualmente, não se pode ignorar o outro. Politicamente, é um erro ignorar metade do país. Não importa que vencedor, o discurso dos primeiros dias tentará cicatrizar as feridas do embate. O problema é que o PT acredita no confronto, na oposição dos contrários, como a única lei do movimento.

Confesso que conheci Dilma melhor nessa campanha. Sobre sua visão política e o assalto à Petrobras já escrevi muito. Registro a decadência cotidiana da política nacional. E temo que estas eleições tenham apenas acentuado minhas advertências. Em todas as minhas viagens pelo Sudeste, esbarrei com a seca. No Rio Piracicaba, na nascente do São Francisco, até a Fonte da Vovó, em Guaratiba, em muitos lugares surgem as marcas da estiagem. E nada de seca nos debates. Não me refiro à inútil tentativa de culpar um ao outro pela seca. Mas uma política de recursos hídricos, recuperação dos rios, fortalecimento dos comitês de bacia, que é uma excelente ferramenta de gestão.

Desde muito que as evidências já não importam mais. Os cínicos triunfaram impondo a tese de que importam apenas as versões. A suprema vitória foi adoção da tática de Goebbels: repetir a mentira muitas vezes para que se confunda com a verdade.

E não é só a adoção de uma tática nazista que marca a descida aos mais baixos níveis de luta política. Há também a admiração dos observadores que se apegam à sua eficiência eleitoral e a medem em números de pesquisa. Quando digo que conheci melhor a Dilma é porque, nessas eleições, através de muitos vídeos, observei nela algo que é muito caro entre escritores: a luta com a palavra, a luta mais vã, segundo o poeta Carlos Drummond.

No entanto, não era exatamente a angustiante escolha da palavra certa que me chamou a atenção, mas sim a fuga escorregadia de proparoxítonas e o sumiço repentino de expressões como tsunami. É uma questão de memória. As revistas científicas divulgam uma pesquisa feita no Massachusetts Institute of Technology que revela algo interessante sobre o tema. Se ao ouvirmos o som da buzina não a associarmos com a vinda de um carro, isso é muito perigoso. Por outro lado, estabelecer vínculos entre milhares de acontecimentos pode ser inútil, criando medos artificiais.

As pesquisas revelaram que na região do córtex se produzem células destinadas a reprimir os neurônios que são responsáveis pela lembrança. Lá dentro do cérebro já existe uma luta independente de nossa vontade entre o lembrar e o esquecer. Depois do debate do SBT, visivelmente cansada, Dilma esbarrou na palavra inequívoca e capitulou na palavra mobilidade: deu um branco. Ela já estava dando sinais de cansaço no final do debate. Numa das perguntas, completou as últimas frases com clichês, demonstrando que acionara o piloto automático. Momentos depois, os gestos começaram a ganhar autonomia. Creio que ela estava, inconscientemente, tentando apoiar o queixo com a mão, disfarçando a tentativa alongando o gesto.

Numa conferência que realizou na CNI, disponível na internet, não havia sinais de cansaço. Mas a memória também falhou. Essa palestra ficou conhecida na internet por causa do erro aritmético: Dilma disse que treze menos quatro é sete. Todos riram e adiante ela corrigiu sua conta. O mais interessante no vídeo é sua luta com a palavra tsunami, que se escondeu numa gaveta, recusava-se a aparecer. “Aquele furacão, aquele Fukushima... no Japão, como é que chama? Tsunami.”

Lembrei-me do meu pai. Ele usava a expressão genérica “como é que chama” para se referir a todas as palavras que escapavam de sua memória:

— Menino, vai ao lado do fogão e pega a como é que chama.

Era preciso ir atento e procurar ao lado do fogão aquilo que poderia ser a como é que chama. Voltava triunfante com a vassoura, certo de que era ela.

Sinceramente, não sei se, em termos eleitorais, todos os lapsos atrapalham Dilma. Os discursos políticos são tão pasteurizados que, às vezes, uma performance como a do tsunami dá uma certa vida. Se for reeleita ao longo desses anos difíceis, talvez os burocratas só a deixem fazer intervenções lendo um texto. Os lapsos são apenas o traço pessoal a ser sepultado pela cuidadosa criação da imagem. Como os neurônios de Dilma vão se combinar para inibir ou produzir lembranças é uma nota ao pé de página nessa campanha de maré baixa na política.

Há certamente temas para não serem esquecidos: esquemas de suborno na sua base aliada, o processo de corrupção na Petrobras, crise hídrica, economia em baixa, violência em alta. De uma certa forma, a luta de Dilma com a palavra a humaniza. É a pessoa pedindo socorro, sob a pesada armadura de estadista em que a cobriram. Uma fantástica máquina de propaganda e um poderoso esquema de corrupção ocuparam o lugar central na política. Até quando? Hoje à noite, saberemos. E amanhã, recomeçamos. Com que esperanças e frustrações, só a definitiva pesquisa das urnas vai dizer.



Por Fernando Gabeira

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