O calor pós-eleitoral não pode ofuscar uma importantíssima iniciativa da Câmara dos Deputados sustando o Decreto Presidencial no 8243 de 23 de maio de 2014, criando a Política Nacional de Participação Social. O referido decreto, também conhecido pelo codinome de "conselhos populares", visava a estabelecer no País uma forma dita "de democracia direta" – diretamente controlada partidariamente e por movimentos sociais e ONGs afins.
A votação, apenas dois dias após a vitória da presidente Dilma, poderia dar a impressão de ser uma espécie de retaliação, conduzida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, magoado por sua derrota ao governo do Rio Grande do Norte e atribuída a um vídeo gravado pelo ex-presidente Lula apoiando o seu adversário ( embora a presidente tenha se mantido equidistante desta disputa estadual).
Também podemos atribuir a iniciativa ao PMDB que se coloca como um parceiro que procura fazer valer a sua posição, expondo seu descontentamento e exigindo que sua importância legislativa seja reconhecida na composição do novo ministério. Todos esses fatores, certamente, têm sua relevância, mas o essencial consiste na defesa do sistema representativo, que não poderia, nem deveria, ser curtocircuitado por um sistema de participação popular partidariamente controlado. É a própria democracia que está em jogo.
Convém aqui salientar que o PMDB, apesar de seus notórios problemas de fisiologismo e defesa paroquial de oligarquias regionais, sabe se posicionar quando questões de princípio intervêm, como as atinentes ao modo de funcionamento de nossa democracia. Quero dizer com isso que o PMDB exerce um poder moderador em questões propriamente institucionais e constitucionais, evitando qualquer forma de radicalização.
Considere-se que o decreto presidencial tinha como objetivo retomar, em âmbito federal, uma política nascida durante as gestões petistas da cidade de Porto Alegre. Logo, não se trata de algo novo, mas de uma retomada das políticas mais à esquerda do PT.
Note-se que a experiência porto-alegrense caracterizou-se pelo controle completo do partido sobre as assembleias ditas de participação direta. Participei de várias e pude, pessoalmente, constatar o controle partidário. A presença dos militantes era visível e eles controlavam todo o processo decisório.
O ex-governador Olívio Dutra, quando foi ministro das Cidades, fez também uma tentativa de instituir essa política em sua pasta, com o objetivo de subordinar as decisões ministeriais aos "movimentos sociais" por ele apoiados na ocasião. Entretanto, o projeto, de tão radical, foi simplesmente engavetado pelo então ministro Antônio Palocci.
Ou seja, até setores do PT se insurgiram contra propostas radicais de outros setores do partido – o PT reformista, social- democrata, posicionando-se contra o PT revolucionário. Saliente-se, ainda, que esse PT mais ideologizado, sofreu uma grande derrota no Rio Grande do Sul, com Olívio Dutra não conseguindo obter a vaga no Senado e o atual governador, Tarso Genro, ficando com apenas 38% dos votos válidos. Há uma evidente necessidade de renovação do PT gaúcho.
Do ponto de vista da história mundial, trata-se da retomada, sob novos contornos, da ideia russa dos sovietes, que, como se sabe, eram totalmente controlados pelo Partido Comunista. Setores mais radicais do PT, via movimentos sociais e ONGS por eles controlados, procurariam repetir a experiência, vindo a exercer maior controle da máquina estatal e da sociedade.
Recentemente, a experiência bolivariana nos países da América Latina tem recuperado a mesma proposta "conselhista", com os partidos no poder aproveitando-se dela para subverter a democracia por meios democráticos. Eis o chamado "socialismo do século 21". E veja-se a situação da Venezuela, caminhando a galope para o abismo.
O decreto presidencial, por exemplo, propunha uma Ouvidoria Nacional dos Conselhos, do mesmo modo da já existente enquanto Ouvidoria Agrária. Conhece- se desta última experiência a tentativa de obstaculizar, por exemplo, os processos de reintegração de posse. O mesmo viria a acontecer com a Ouvidoria dos Conselhos, com a diferença de que sua esfera de atuação seria sensivelmente maior.
O decreto também propunha uma Mesa de Diálogo, como se o diálogo entre as partes precisasse ser feito por ato administrativo, quando basta que o governo intervenha como mediador entre as partes quando surge um conflito aparentemente insolúvel.
Observe-se ainda que estaria estabelecido todo um poder paralelo de governo, legitimado pelo Decreto, que teria interferência nos assuntos legislativos, judiciários e do Ministério Público. Imaginem a profusão de instâncias a fazer pressão sobre os poderes representativos vigentes.
Não se trata, evidentemente, de não reconhecer a necessidade de interlocução com os diferentes setores sociais envolvidos em distintas políticas públicas. A negociação faz parte do exercício da política e de práticas administrativas voltadas para a conciliação e o não acirramento de conflitos.
Nada mais normal que consultas sejam feitas informalmente, não obrigatoriamente, não criando, assim, nenhum freio burocrático que terminaria amarrando politicamente todo o sistema da administração pública.
Seria inevitável em um processo administrativo conselhista desse tipo a multiplicação de etapas, criando uma imensa burocratização de todo o aparelho estatal. Se a burocracia brasileira já é travada, ela se tornaria decerto muito pior. Imaginem os entraves na área ambiental, com as ONGS determinando, em nome da sociedade civil, o que pode ou não ser feito.
O novo Código Florestal, em uma perspectiva conselhista, poderia ser simplesmente inviabilizado, em nome, decerto, da "sociedade civil". A Câmara dos Deputados, ao votar esse decreto, contrapondo-se ao decreto presidencial, exerceu uma prerrogativa sua, tanto mais importante por situar- se no contexto mais geral de consolidação da democracia representativa no País.
Por Denis Lerrer Rosenfield
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