domingo, 2 de agosto de 2015

As consequências não-intencionais. Ou: o inferno está cheio de boas intenções


O “intelectual” é aquele que coloca as ideias acima das pessoas de carne e osso. Da quietude de seu escritório, do conforto da civilização, ele produz as ideias mais mirabolantes que ficam lindas no papel. O problema é a maldita realidade, são os fatos, esses desgraçados!

Hayek chamou a atenção para o perigo da “arrogância fatal”, desse tipo de mentalidade que gera ideias “fantásticas” de cima para baixo, como se a sociedade fosse um tabuleiro de xadrez e a natureza humana uma tabula rasa, uma página em branco. Resultados catastróficos costumam se seguir dessa postura.

O socialismo, por exemplo, em suas diferentes vertentes: o nacionalista, o internacional, o envergonhado. Este último foi o caso da criação da União Europeia. Uma construção de pensadores de esquerda, muitos franceses, incomodados com a força do Bundesbank, o banco central alemão, e com as humilhantes desvalorizações das demais moedas frente ao marco. Seria uma forma da França resgatar seu orgulho e seu papel ativo de liderança.

O plano da moeda comum contou com o empolgado apoio de Jacques Delors, com longa carreira nas políticas socialistas francesas. Ou seja, era tudo uma maneira de impor um caminho coletivista e socialista de cima para baixo. Enquanto os Estados Unidos da América tinham surgido de baixo para cima, espontaneamente e com apoio popular, os Estados Unidos da Europa seriam paridos de cima para baixo, da arrogância de seus líderes coletivistas, sem a respectiva identidade europeia dos povos, que continuavam sendo alemães, franceses, italianos etc.

Em suma, o euro é um projeto político, que visa à centralização do poder na região. Os burocratas “sem rosto e sem votos” em Bruxelas dão todas as cartas. Os alemães de classe média são obrigados a sustentar a farra dos gregos, italianos, espanhóis e até franceses mais irresponsáveis. Essa é justamente a visão socialista de mundo: “de cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com sua necessidade”. Ela nunca deu certo.

Mas diante do fracasso, o que fazem os socialistas? Culpam os fatos, e preservam a ideia! Basta ler a coluna de Verissimo hoje, enaltecendo a bela ideia, que teria sido capturada por banqueiros gananciosos e insensíveis (sempre a mesma ladainha). Os esquerdistas jamais questionam suas premissas. Quando suas “lindas ideias” fracassam – como sempre sói acontecer – a culpa é sempre dos outros, dos capitalistas, dos ricos. Escreve Verissimo:

Mas nem Napoleão Bonaparte nem Monnet e os outros visionários poderiam imaginar que suas ideias seriam sequestradas pelo capital financeiro e a sonhada comunidade europeia acabasse numa desunião entre credores e devedores, um império de paróquias defendendo seus respectivos banqueiros, com a capital, claro, em Berlim. A ideia não era essa.

A questão é essa: esses “visionários” nunca levam em conta as tais consequências não-intencionais. Eles jamais voltam às premissas para checar se continuam válidas, se são verdadeiras. Eles têm as “grandes ideias” e ponto final: que o experimento com as cobaias humanas comece! A ideia não era “essa”: mas para muitos, o resultado era previsível, se ao menos a ideia não valesse tão mais que a realidade.

Achar que o trabalhador de classe média alemão vai mesmo sustentar feliz da vida a elite grega em nome do altruísmo, da “comunidade europeia”, é realmente um espanto! Perguntem se Verissimo quer dar parte de sua fortuna para sustentar os ricos argentinos em crise. Claro que não! Os “altruístas” costumam ser muito gananciosos. Mas talvez ele ache que o trabalhador de classe média brasileiro devesse bancar a farra da elite argentina, na marra…

Mesmo assumindo uma premissa questionável – a de que esses socialistas partem das boas intenções – o que eles costumam ignorar sempre é o velho ditado popular, de que o inferno está cheio de boas intenções. O livro As boas intenções, do escritor espanhol Max Aub, ilustra de forma brilhante como medidas repletas de bons sentimentos podem acarretar efeitos catastróficos, inclusive na vida daqueles que tais ações mais visavam a ajudar.

Trata-se da história de Agustín Alfaro, “o que normalmente se chama um bom rapaz”, nas palavras do autor. O livro retrata uma série de acontecimentos trágicos que vão ocorrendo à medida que Agustín tenta proteger sua mãe do sofrimento. Tudo começa quando surge na casa da família uma moça chamada Remedios, que alega ser mãe de um filho de Agustín. O problema é que o rebento não era de Agustín, e sim de seu pai, que usara o nome do filho com a amante.

No afã de poupar sua querida mãe de tamanho sofrimento, uma vez que ela considerava o marido um homem exemplar, Agustín acaba aceitando a farsa. O que se segue é uma verdadeira comédia de enganos que, naturalmente, acaba por desgraçar ainda mais a vida de sua mãe, sem falar das demais envolvidas, começando pelo próprio Agustín. Ele queria ajudar, mas não contava com as consequências não-intencionais de seus atos nobres…

Em seu livro sobre o mal, o pensador francês Michel Lacroix tem um capítulo justamente sobre “os fracassos da vontade do bem”. Ele faz uma pergunta angustiante, mas que todos deveriam se fazer: “mesmo que queiramos o bem, teremos nós a possibilidade de o concretizar”? Lacroix vai além e questiona: “Será possível que, por uma espécie de maldição, a vontade do bem gere o próprio mal”?

Não vamos esquecer que o século XX foi uma epopéia da luta contra o mal, e as experiências socialistas buscaram criar um paraíso terrestre, extirpando do mundo todos os males que assolavam a humanidade. Não foram poucos os bem-intencionados que embarcaram nessa canoa furada. O que essas pessoas talvez não levaram em conta no momento de aderir às utopias pode ter sido justamente as tais conseqüências indesejadas. Para acabar com a fome, por exemplo, os regimes socialistas coletivizaram as terras agrícolas, produzindo milhões de vítimas de inanição.

O fracasso do socialismo é bastante evidente hoje, mas não muito diferente é a esperança que o “estado social” despertou e desperta nessas “almas caridosas”. Todos terão direito a uma saúde digna bancada pelo governo. Todos terão garantias de bons empregos e salários. Todos terão conforto material oferecido pelo estado. Independentemente da nacionalidade, inclusive. E, novamente, poucos pararam para fazer aquela incômoda pergunta: e se os meios que defendo para fins tão nobres produzirem conseqüências indesejadas ou mesmo resultados perversos? Volto à Lacroix, que coloca o dedo na ferida:

As grandes instituições, nomeadamente as que asseguram um serviço público, devem, por sua vez, responder por acusações graves. A sociologia das organizações mostrou que estas instituições consagradas ao bem comum são frequentemente minadas por desvios de finalidade, disfunções burocráticas, que as tornam improdutivas. Na primeira linha dos inculpados figura o Estado-providência, acusado de alimentar a passividade dos beneficiários e de esterilizar as energias. Não sufocará o Estado-providência aqueles que protege?

Agora imaginem isso em nível continental, misturando-se diferentes povos que não se enxergam como “europeus”, mas sim como gregos, alemães, italianos, portugueses, espanhóis e franceses. Pode dar certo? Para os liberais, que levam em conta a realidade como ela é, que conhecem a natureza humana, não. Mas para quem foca apenas na ideia, e não liga para os fatos ou para as pessoas concretas e reais, o que importa é continuar tentando, preservar a ideia viva, mesmo que seu custo sejam milhares de vidas miseráveis no processo. Se ao menos dessa vez a ideia vingar…





Por Rodrigo Constantino

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