quarta-feira, 1 de abril de 2015
A farsa das "classes sociais"
Há uma diferença gritante entre o discurso da militância pró-PT e dos partidos ditos “sociais” e o logos dos liberais, dos conservadores e daqueles com uma visão individualista do destino do homem através de suas escolhas.
Os primeiros, quando no poder e se tornando situação, gritam: “Chora, coxinha!”, “aceitem as urnas”, “agora vou rir da classe média tendo horror ao filho do pedreiro viajando de avião” (como se a reclamação de alguma pessoa no país ao PT fosse que ele está deixando os pobres muito ricos e ninguém gosta disso), “agora os reaças vão ter de fugir para Miami”, “Dilma sambou”, “Dilma lacrou”, dentre outros rios de comentários impublicáveis.
Já os liberais, conservadores e defensores da liberdade individual, desatrelando o destino humano de um plano de poder estatal, quando estão no poder, não gritam “chora, pobraiada!”, “vou rir da cara dos meus empregados e botá-los na rua”, “agora os petistas terão de fugir para Cuba” e afins, fora alguns casos isolados de psicopatia.
Isto se dá porque, ao contrário do que nossa educação, nossa imprensa e nossa cultura coletivista fazem crer, os liberais não são inimigos dos pobres – pelo contrário: muitos deles são pobres – e, sobretudo, liberais crêem no poder da iniciativa individual. Se há alguém que sofre com um governo liberal, este alguém é quem está ganhando muito sem produzir hoje – e quem faz isto tomando dos outros é quem vive de política. São os políticos e os parasitas da burocracia, portanto, os únicos de quem os liberais riem quando convencem a sociedade a seguir seu caminho.
Em outras palavras, nenhum trabalhador de fato tem algo a perder com uma aproximação ao liberalismo, ao contrário de toda a propaganda socialista travestida de “isenção” que é vista no país. Os liberais, afinal, querem os pobres se tornando ricos – e não os xingarão quando eles viverem com as próprias pernas, sem mais vender sua necessidade em troca de obediência eleitoral e poder político.
Já o militante da “política social” e seus partidos vermelhos vive de tomar o que outras pessoas produziram com o trabalho delas através de impostos, supostamente para corrigir a desigualdade, e portanto tem um horror visceral a qualquer idéia defendendo que as pessoas trabalhem e fiquem com o fruto de seu trabalho para si, e não nas mãos controladoras dos burocratas e dirigentes da sociedade.
Esta propaganda travestida de análise científica, portanto, falha graças a um de seus pressupostos mais basilares: tem uma fé cega na existência de “classes sociais” que, como já visto na teoria mais famosa da esquerda política, estariam em “luta” – e tal luta não apenas seria freqüente, como seria o próprio motor da história.
Esta teoria que tanto anima a esquerda é radicalíssima em sua essência. Entretanto, hoje fazem crer que ela está ultrapassada e não é mais usada, quando todo o jornalismo (não apenas o oficial), a academia e a cultura a seguem pari passu.
O problema se inicia no auto-reconhecimento. Como fazia sempre o diplomata José Osvaldo de Meira Penna a seus alunos em Brasília, urge primeiro descobrir a que classe a pessoa que afirma tal discurso pertence. Alguém que jura que existam classes sociais, que a análise da história, da sociedade e mesmo da consciência seja dependente de uma “classe” intransponível, deve, no mínimo, saber a que classe ele próprio pertence.
Os alunos de Meira Penna, quando interpelados com esta pergunta facílima, sempre escorregavam – ainda mais tentando macaquear a posteriori o ultrapassadíssimo linguajar do início da esquerda no séc. XIX. Consideravam-se “burgueses”, “aristocratas” ou até mesmo “proletários”, sem perceber que, na taxonomia forçada do criador do pensamento “classista”, eram da burocracia.
Para o pensador pai da esquerda radical, pertencer a uma classe social determina até mesmo nossas sinapses, valendo mais do que qualquer cultura, nacionalidade, criação, valor, vontade, história individual ou educação.
Tudo se resume a uma “consciência de classe” (Klassenbewusstsein) que analisa a inteireza do tecido da realidade pelo prisma de um “interesse de classe” – a classe burguesa tentando “explorar” a classe proletária, que só teria sua própria força de trabalho (e sua prole) para vender ao outro que ficaria com o produto do trabalho sem ter trabalhado.
Restaria então a tal proletário (ou camponês, embora não houvesse a crença no poder de mobilização do trabalhador do campo) retomar sua “consciência de classe” tomada dele pelo mecanismo da “alienação do trabalho”.
Toda a alienação viria da superestrutura e da infraestrutura da sociedade, que confundiriam o proletariado, fazendo-o acreditar que seus interesses são compatíveis com o do burguês capitalista. Para a esquerda, não se pensa sozinho: é a estrutura de uma classe que pensa por nós. É o materialismo histórico-dialético em sua essência.
Não existiria, portanto, o homem, esta entidade una, indivisível, com destino e escolhas próprias, e sim apenas o trabalhador, espoliado de sua natureza original pela aberração da cultura burguesa. Toda a família, a religião, a moral, os valores, os símbolos, a cultura e o pensamento burguês, já que a História é a luta de classes, seriam apenas fingimentos e disfarces para que todo burguês proteja seus interesses egoístas e exploradores e avilte e humilhe o trabalhador com sua iniquidade.
Todos os burgueses seriam estes monstros a serem eliminados pelo socialismo, exceto o burguês que criou a teoria e aqueles que a seguiram, claro.
Este é o chamado “pensamento classista”, tão ensinado por “entidades de classe”, ou seja, sindicatos, ONGs e ferramentas de tomada de poder político que dizem representar não alguém que lhes delegue poder via representação, mas simplesmente toda uma “classe” escolhida a dedo – e falando em nome dela, supostamente.
É o que liberais chamam de “coletivismo”, os seres humanos tratados como um rebanho de figuras anônimas, que apenas seguem a manada de sua “classe” – sem que se perceba que quem declara isso, tentando enxergar “valores de classe média”, “vontade popular” ou outros conceitos radicalíssimos tratados com normalidade, são invariavelmente pessoas que pertencem a uma classe mais abastada, mas que tem empatia com uma classe distinta – todavia, continua pregando que todos os que pertencem a uma “classe” só têm interesse em proteger a sua própria classe, e que apenas ele, por milagre ontológico na nervura do real, acabou escapando à repetição do círculo.
Seriam os velhos radicais, que, segundo a visão corrente da história, copiada por jornalistas, intelectuais e outros bem-pensantes “críticos”, tiveram um papel menor na política nacional e internacional em tempos recentes – justamente quando vários de seus asseclas tomaram o poder nas últimas duas décadas.
Contudo, o pensamento classista hoje deixou de ser coisa de radicais antiquados, sempre chamando genocídios de “outro mundo possível” – ou mesmo de “luta contra a ditadura” e até “democracia”, quando convém.
Hoje, julgar motivações, vontades, interesses, movimentos e até pensamentos de alguém por sua “classe” virou rotina no jornalismo, na academia, no governo. Sobretudo nos últimos anos.
Fala-se em “classe trabalhadora” (visto que “proletário”, além de ter saído de moda, se provou uma palavra datada tentando definir como arauto do fim do capitalismo justamente a classe que o capitalismo tratou de enriquecer e fazer deixar de existir) contraposta à “classe média” – como se esta não trabalhasse – em estudos de sociologia, em discursos presidenciais, em análises jurídicas e econômicas, em qualquer discussão onde se espera uma certa normalidade sem tiroteios amalucados de conceitos maluco-beleza – e não se atina nunca para o fato de que tais vocábulos são, por si, mais extremistas do que o próprio Lenin.
Pior: pela taxonomia biológica, que organiza os seres vivos por características em comum, temos Reinos (Monera, Protista, Fungi, Plantae, Animalia), filos, classes, ordens, famílias, gêneros, espécies (nesta ordem). A comparação iniciada pela esquerda de pensar que existam “classes sociais” faz crer que seres humanos sejam mais capazes de trocar de espécie, de gênero ou de família do que de “classe”. Classe social, então, seria uma condição mais estanque, delimitadora e fatalista do que suas palavras equivalentes fora da taxonomia biológica.
A verdade dura é que ao contrário das sociedades de estamentos, de castas, de escravos ou outras formas de coletivismo inato, o capitalismo foi justamente o sistema econômico que destruiu o conceito de “classe”, tornando-o apenas uma faixa salarial temporária. Esta faixa é tão variável na vida conforme as escolhas do indivíduo que, num país de economia livre como a América, a maioria dos 20% que nascem em uma família da faixa salarial mais baixa pode fazer parte dos 20% mais ricos em uma década, conforme nos informa Thomas Sowell.
Quando falam em “classes” dentro do capitalismo, estão usando o conceito diametralmente oposto à realidade: é o único sistema econômico do mundo em que não há classes estanques, e sim variações salariais.
Tampouco é a classe “burguesa” (ou seja, comercial) a classe média, com a “classe alta” sendo dominada por nobres. Qualquer telespectador de Downtown Abbey sabe que há muito o capitalismo conseguiu tomar o lugar da nobreza, hoje muito mais simbólica e cultural, em países em que ela ainda existe.
Os homens mais ricos do mundo, ao contrário do que é ensinado nas nossas escolas, não são os bem nascidos: são os criadores de ideias, muitos que passaram anos numa garagem, que ganharam muito com seu trabalho inovador. A pobreza (e mesmo a riqueza) no capitalismo não são destino. Em todos os outros sistemas, e sobretudo no socialismo, são a condição fatal e única de toda a vida de um ser humano.
O conceito de classe foi sempre “retrabalhado”, para não soar ridículo, pela esquerda do século XX. Primeiro, invertendo a “superestrutura” com a “infraestrutura” do radical original, criando coisas como a Escola de Frankfurt. No meio do caminho tivemos pensadores como E. P. Thompson, que concluiu ser impossível diferenciar um burguês de um proletário, enquanto repaginadores mais modernos, como Ernesto Laclau, já sabem que apontar um grupo de inimigos escolhido a dedo como uma “classe” e nomeá-lo assim é que faz aquela classe “existir”. Exatamente o que acontece hoje no Brasil.
Quando o conceito de “classes sociais” é exposto em sua história, seus interesses próprios e suas premissas ocultas, soa sempre ultra-radical e ultrapassado – ainda mais atrelado a seus sub-conceitos, como “consciência de classe”, “interesse de classe” etc.
Todavia, ainda é a norma (e tratado, justamente, como normal, como se fosse um fato, tratando como extremista quem o nega) para se fazer análises de temas sociais.
E conceitos coletivistas, deterministas, fatalistas e criados por teóricos que promoveram o maior genocídio da história mundial ainda subsistem mesmo em análises as mais prosaicas.
Ou ninguém conhece hoje a forma como a população urbana julga pessoas com termos “denigritórios” como “coxinha”, analisa movimentos afirmando algo sobre a cor da pele, a faixa salarial ou o local de trabalho das pessoas (até termos como “traição de classe” são encontrados no jornalismo), ou ainda como universitários e intelectuais não enxergam seres humanos com sua dialética própria, mas sim apenas “classes” que, supostamente, deveriam se odiar e se matar para fazer a história andar – e, sempre, sem perceber que fazem parte da mesma classe que estão jurando de morte?
Enquanto o conceito de classe não cair, ainda será tratado como uma normalidade e um fato, simplesmente por pessoas demais repetirem as mesmas palavras. É a crença do vulgo, o novo ópio das massas – e um “intelectual” hoje costuma ser apenas alguém que sabe mover alguém com tais termos, usando-os como chicotes.
No dizer iconoclasta de Nietzsche, “nunca nos livraremos de nossos deuses enquanto não nos livrarmos de nossa gramática”.
Por Flavio Morgenstern
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