“Coxinhas, oh céus, coxinhas!”. A acusação aos manifestantes do 15 de março, que prometem voltar no 12 de abril, não é um argumento político, mas uma condenação de classe. Sua fonte de inspiração encontra-se nas invectivas de Marilena Chaui, pronunciadas durante as celebrações de dez anos de governos lulopetistas, em 2013: “Eu odeio a classe média. A classe média é estupidez. É o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista. A classe média é uma abominação política, porque ela é fascista, uma abominação ética, porque ela é violenta, e uma abominação cognitiva, porque é ignorante”. No erro crasso da filósofa, discerne-se a natureza da crise que assola o PT.
Chaui, uma professora de classe média, odeia seus colegas, seus alunos, seus amigos – e a si mesma. Entretanto, ela não entende a classe média, nem no registro sociológico, nem no histórico.
Sociologicamente, a classe média não é una, mas diversa. O crescimento econômico e a modernização social acentuam a diversidade das classes médias (assim, no plural), borrando as fronteiras que as separam dos trabalhadores assalariados. Nas democracias opulentas do Ocidente, esses segmentos compõem a maioria da população. Como explicou Timothy G. Ash, a mensagem das revoluções de 1989 no leste europeu era “queremos também ser de classe média, no mesmo sentido em que os cidadãos da metade mais afortunada da Europa são de classe média”. A tentativa de definir a classe média por uma coleção de adjetivos derrogatórios é uma prova, entre tantas, dos efeitos obscurantistas do pensamento ideológico.
"Se há um traço comum às classes médias, ele se encontra na autonomia dos indivíduos inscritos nesses segmentos em relação ao poder estatal e às organizações corporativas."
Se há um traço comum às classes médias, ele se encontra na autonomia dos indivíduos inscritos nesses segmentos em relação ao poder estatal e às organizações corporativas. Em contraste com os trabalhadores organizados, as classes médias tendem a mover-se ao largo de sistemas rígidos de intermediação política, o que confere forte imprevisibilidade a seu comportamento na arena pública. Daí o incontido ódio da filósofa: as classes médias não se amoldam à caixinha dos partidos que anunciam a salvação do povo.
Historicamente, e por isso mesmo, as classes médias transitam da abulia política a mobilizações intensas, articuladas em torno de valores públicos gerais (liberdade, ordem, moralidade etc.). Desde, pelo menos, a década de 60, as classes médias situam-se no núcleo dos mais relevantes movimentos políticos. As revoluções operárias clássicas esmaecem no passado. Ironicamente, a última delas, o movimento polonês do Solidariedade, em 1980, foi um levante contra o “socialismo real” e um partido que declarava representar a classe trabalhadora.
Os protestos contra a Guerra do Vietnã basearam-se na classe média. A Primavera Árabe foi impulsionada pela classe média. “Coxinhas” persas mobilizaram-se pela liberdade no Irã dos aiatolás. “Coxinhas” franceses encheram as ruas de Paris para dizer “Eu sou Charlie”. Fixado no passado remoto, o PT lembra com razão que a Marcha da Família foi de classe média, mas finge esquecer que eram “coxinhas” os que gritaram “Diretas Já!” e “Fora Collor!”.
Chaui odeia a classe média. Pol Pot também odiava, especialmente os intelectuais. No seu Camboja, usar óculos era um passaporte seguro para os campos da morte. Dilma Rousseff faz tudo errado, mas sempre acertou na mosca sobre a meta que almeja: um país de classe média. Lula recorda-se bem que a influência do PT difundiu-se a partir da classe média. Por isso, em plenária de militantes, declarou-se “irritado” com “companheiros dizendo que quem vai para a rua contra nós são os que não prestam e nós somos os bons”, para reconhecer: “Eles têm direito”.
Chaui, a odienta, disse certa vez que “quando Lula fala, tudo se ilumina”. Não é verdade – mas, nesse caso específico, a militância alucinada deveria ouvi-lo.
Por Demétrio Magnoli
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