O reaparecimento dos protestos nas ruas, por diferentes grupos etários e de diferentes classes sociais e origens, bem como recentes pesquisas que demonstram a insatisfação crescente da população com a qualidade de seus representantes suscitou análises que apontam para uma aparente crise política no país, com possível dano à consolidação de nossa jovem democracia. O que estes argumentos perdem de vista – e ao largo – é que o reaparecimento de demandas nas ruas, aliado a uma maior percepção dos deveres de nossos representantes para com suas posições no Executivo e Legislativo, bem como com uma transparente prestação de contas – além da possibilidade de sair às ruas para o externamento de diferentes demandas ou pontos de vista – evidencia, por sua própria ocorrência, um caminho ao amadurecimento do nosso processo democrático. No entanto, é inegável que o caminho vem sendo tortuoso, manchado com escândalos seguidos de corrupção, multiplicação de partidos ocorrendo de forma simultânea à perda da identificação da população com qualquer um deles, e campanhas por cargos eletivos bilionárias que pouco refletem propostas – sendo muito mais uma performance midiática.
Para mudar, então, a bandeira levantada já há algum tempo para a salvação do país vem sendo uma ampla reforma política, que, como uma Arca de Noé, salvará nossa política do mar de imoralidade e fisiologismo que há muito impede o Brasil de alcançar o molde a qual anseia, de democracia liberal, com serviços públicos de qualidade, transparência e gestão eficiente.
Os caminhos apontados para essa “salvação” incluem, como na sugestão do Partido dos Trabalhadores (PT) de nossa presidente, um financiamento exclusivamente público, o que, supostamente, quebraria o vício em dinheiro privado – que, nesta visão, seria o motor para a corrupção e mercado de propinas que há tanto se impõe como mecanismo-mor da política no país. De acordo com Romero Jucá (PMDB-RR), relator do Orçamento de 2015, tal proposta significaria um custo de R$ 5 bilhões para os cofres públicos, para financiar a campanha do jeito que ela é conduzida atualmente. Isso significaria uma alta em mais de cinco vezes o valor já aprovado para 2015 do Fundo Partidário, de R$ 867,6 milhões (que sofreu, por sua vez, uma alta de mais de 300% em relação à 2014). Esse mecanismo salvacionista, então, já opera com bastante constância no Tesouro Nacional, com repasses diretos aos partidos – que insistem em esquecê-lo como forma de financiamento público. Isto é de chocar, especialmente considerando a contundência com o qual parlamentares jogam o financiamento público como salvação das forças corruptoras, em um joguete tosco de “mães” da corrupção – como se o uso da máquina pública para auto-favorecimento não fosse uma escolha muito bem pensada e cimentada para a manutenção de poder de diversos atores das elites política e econômica do país.
Outros “remédios” milagrosos são apontados por nossos representantes; o PMDB apoia o “distritão”, onde há a supressão dos “puxadores de votos” (atualmente o número de cadeiras do Congresso é determinada de acordo com o número absoluto de votos para o partido, fazendo com que candidatos com pouquíssimos votos conquistem cadeiras devido à um candidato com expressiva quantidade de votos, como Tiririca, que alavancou o tamanho de seu partido, o PR), com o voto individualizado no candidato (com estados se tornando distritos), e não mais com base na coligação. O PSDB apoia o “voto distrital misto”, onde 50% das cadeiras do Congresso ficam reservadas a um sistema que divide os Estados em distritos, definidos com base em sua população, permitindo que o eleitor consiga acompanhar melhor a atuação do parlamentar e também deixando mais palpáveis as promessas de campanha, agora mais locais.
No entanto, independentemente da “boa intenção” de nossos representantes, nenhuma dessas propostas vai muito além do cosmético, não atacando os pontos nevrálgicos que fazem do nosso aparato burocrata-estatal um gigantesco balcão de favores. O problema central do país, cujas reformas após a redemocratização deveriam ter ido em direção à correção, não está simplesmente em uma ou outra lei que falta, ou mesmo na falta de aplicação das leis anticorrupção que já existem de monte. Sua origem, e perpetuação, residem na visão que o conjunto de atores no Brasil têm do Estado, seu papel, e sua relação com agentes privado.
Temos, historicamente, uma confusão que levou a uma promiscuidade nas relações entre público e privado. Colonização, duas ditaduras profundamente estatizantes e centralizadas (Ditadura Vargas, de teor sindical-fascista, e Militar, “tecnocrata” e moralista), que suprimiram as iniciativas espontâneas individuais e levaram o país a um vício em medidas de cima-para-baixo, sempre aguardando o governo como via de escape das mazelas.
Atualmente, isto está mais que evidenciado com comentários como os dos empresários envolvidos na Operação Lava-Jato, que escancarou um esquema de favorecimento e lavagem de dinheiro via “doações” (i.e. propinas), principalmente direcionadas ao PP, PT e PMDB, que relatam “não ser possível fazer nada sem liberar um cheque” – mas, nem é preciso ir às páginas do jornal: repare que qualquer problema do país resulta em um chamamento coletivo por mais e mais leis, que, com certeza, vão colocar as coisas no lugar.
O paradoxo aqui é que o brasileiro, em geral, não quer esperar pela pílula mágica do governo – e isto se reflete em diferentes prismas: altos níveis de empreendedorismo (apesar de um dos sistemas burocráticos mais complexos do mundo para empresas), nosso dinamismo evidenciado com rápidas recuperações de crises econômicas (muitas vezes, como a atual, originadas de equivocadas escolhas de políticas pelo governo) e uma emergente classe C que, conforme pesquisas, credita sua recente ascensão social ao seu próprio esforço – e com razão. Se erigida sobre a justificativa de “poupar o trabalhador” da crise internacional (que em países emergentes similares ao Brasil, se não foi ‘marolinha’, durou menos de dois anos e hoje estes despontam muito a frente de nosso desempenho), a recente inflexão rumo a um maior inchaço estatal fez pouco por esses trabalhadores: a real proteção foi um maior isolamento do país das correntes de comércio mundial e distribuição a rodo de subsídios (cerca de R$ 500 bilhões via BNDES apenas), a um punhado de “parceiros estratégicos” – que na verdade protegeu apenas uma classe privilegiada já acostumada as regalias de nosso capitalismo de estado, alguns já há tempos servindo-se do Tesouro, outros tantos recém-acomodados.
Como o Ministro da Fazenda Joaquim Levy muito bem expôs, no entanto, este capitalismo de estado não combina com uma democracia moderna. Governos, cuja visão de planejamento é curta como o prazo para as próximas eleições e seus shows espalhafatosos, elaboram obras de infra-estrutura e serviços públicos a toque-de-caixa, com pouquíssimo planejamento. Com a decisão de boa parte de nosso Executivo de entregar os ministérios, secretarias de estado, estatais e órgãos afins respondendo ao acordo político da vez (sem qualquer critério de competência ou confiabilidade), em troca desse ou daquele a qual recebeu apoio no último pleito, a falta de transparência e controle se impõe, com poucas métricas de eficiência nos gastos ou na execução das obras. Os 39 ministérios do Governo Federal e quem os ocupa são um claro exemplo disso, bem como a Petrobrás e sua partilha entre PT, PMDB e PP.
Na outra ponta, a dependência de atores privados em empréstimos e obras públicas, em uma economia dinâmica e já consolidada como a brasileira, vicia as escolhas econômicas e distorce profundamente o mercado. Financiamentos à empresas privadas são coordenados por um banco estatal, cujos critérios de escolha são nebulosos e sujeitos à ingerência política da vez (a recusa do BNDES de revelar com detalhes seus mecanismos mora aí). Com boa parte (perto de 80% no quadriênio 2010-2013) indo para grandes empresas, secam as fontes para as médias, pequenas e ao microempresário. Além disso, o setor privado aprende que, para se aproveitar do pote de ouro, deve se curvar às circunstâncias. Aí está a gênese da corrupção e os complexos meandros que adquiriu com o inchaço da máquina pública.
Além disso, o vício na ação estatal por parte de atores privados provoca uma reação em cadeia – quem se aproveitou uma vez do privilégio, irá certamente querer mantê-lo. Ao não fazer isto, o governo se compromete, já que havia feito promessas. Por um tempo, pode ser possível, mas elas se acumulam, e começa a se tornar impossível manter todas elas niveladas nas expectativas dos atores individuais – o sistema está minado; pressões internas e disputas de poder tornam-se o centro da preocupação não só do planejamento do governo, mas de uma série de privilegiados que querem sua parte.
Os políticos brasileiros, ao quererem nos vender a ideia de reforma política como panaceia para a crise de representação, invertem o jogo: a culpa não é deles, não é de um governo que prometia privilégios eternos à todos (e, não surpreendentemente, agora falha para manter até os próprios), não é do fisiologismo e muito menos dos seus pífios desempenhos: a culpa é da falta de meia dúzia de leis. A venda é casada: como tantas outras promessas, ela vem junto com o pacto implícito de manter o status-quo da classe de privilegiados, atores individuais que se apropriam da máquina pública para o próprio interesse. Os privilégios não pararão enquanto não houver uma gestão mais transparente e simplificada da coisa pública, com critérios básicos de meritocracia para burocratas e o fim de indicações puramente políticas aos cargos de Governo, e ainda mais imperativo, ainda que quase um tabu para os que tanto se esbaldam no banquete de privilégios: a diminuição de seu tamanho, cuja expansão agiu como gasolina em um incêndio ou cachaça para um alcoólatra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário