O criador da teoria do “peemedebismo” na política brasileira diz que a presidência de Eduardo Cunha na Câmara vai colocar o governo Dilma a reboque do PMDB
Professor da Universidade de Campinas (Unicamp), o cientista social e filósofo Marcos Nobre é o celebrado autor da tese do “peemedebismo”, como ele batizou a ideia da existência de um bloco de forças políticas que, ao se associar ao governo, lhe dá estabilidade e o blinda contra ameaças como o impeachment que o ex-presidente Fernando Collor sofreu em 1992. Para Nobre, a eleição do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para a presidência da Câmara dá novas feições ao “peemedebismo”. E, ao mesmo tempo, representa um fracasso da estratégia do governo Dilma de enfraquecer o PMDB, estimulando a criação de novos partidos médios, como o PSD e o Pros, controlados respectivamente pelos ministros Gilberto Kassab (Cidades) e Cid Gomes (Educação).
ÉPOCA – Como analisa a vitória do deputado Eduardo Cunha na disputa pela presidência da Câmara?
Marcos Nobre – O Eduardo Cunha representa uma nova configuração do peemedebismo. Uma coisa é você ter todos os partidos querendo ser o PMDB. Outra coisa é você ter o PMDB como um partido de referência dos demais partidos. Essa é a coisa nova no peemedebismo, que não significa que o PMDB manda no sistema, mas sim que todos os partidos querem ser PMDB. O Lula fez um acordo com o sistema político tal qual ele sempre funcionou, desde, pelo menos, o Plano Real. Nesse acordo, entregou para o sistema político o que ele sempre pediu. Mas, ao mesmo tempo, ampliou programas sociais para reduzir a desigualdade. Ele contou a seu favor com seu carisma e com o boom das commodities. A Dilma não tem nem o boom de comércio nem carisma. Pelo contrário. Está enfrentando uma crise econômica mundial. Então, ela não consegue mais atender ao sistema político nos termos em que o Lula fez e tem de baixar o apetite de todo mundo. Para fazer isso, apostou na fragmentação partidária. Por um lado, dá mais trabalho para negociar, mas, por outro, fica mais barato, porque um partido do tamanho do PMDB exige muito em troca. A eleição do Eduardo Cunha foi uma reação a esse processo de fragmentação, que teve efeito inverso ao esperado pelo governo. A estrela explodiu, e agora seus pedaços estão orbitando em torno do PMDB, no qual o Eduardo Cunha passou a ser uma referência.
ÉPOCA – É por isso que o governo Dilma passou a apostar na aliança com o ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab?
Nobre – Lembra-se de quando foi criado o PSD, o partido do Kassab? Foi em 2011, o primeiro ano do governo Dilma. Dois anos depois, foi criado o Pros. Agora, o Kassab está com essa ideia de recriar o PL. Então, houve essa aposta na fragmentação do sistema político para que o PT mantenha a liderança desse enorme “condomínio peemedebista”. Se você fragmenta o PMDB em vários partidos médios, nenhum partido tem poder para chantagear, a não ser que o façam em bloco. Assim foi todo o primeiro mandato da Dilma. Essa também foi a estratégia para a eleição presidencial. No fundo, o objetivo era diminuir o tamanho do PMDB, de maneira que o PT tivesse muito mais deputados que os outros partidos. Só que essa estratégia deu muito errado.
ÉPOCA – O que aconteceu para esse plano dar tão errado?
Nobre – Se você olhar a trajetória do Eduardo Cunha, a maior característica dele é ser um deputado muito hábil e com uma alta capacidade de articulação política. É alguém que também foi sempre bloqueado dentro do PMDB. Quando começou a galgar postos dentro do PMDB, Cunha foi bloqueado pela cúpula partidária. Qual foi a resposta dele? Ele percebeu que tinha de construir uma bancada de aliados suprapartidária que não se restringisse ao PMDB. Percebeu antes dos outros que era possível formar bancadas fortes, capazes de chantagear o governo fora da esfera partidária. Com isso, Cunha criou um modelo novo no qual não há um partido que funciona como um PMDB, mas figuras dentro do PMDB que passam a organizar bancadas que incluem deputados e senadores de todos os partidos. Os partidos menores passam a orbitar em volta do PMDB. O que o Kassab está tentando fazer é reproduzir essa mesma lógica que o Eduardo Cunha viu muito antes.
ÉPOCA – Como vai ser a relação de Cunha com Dilma?
Nobre – Do ponto de vista das relações entre o Executivo e o Legislativo, acho que a situação se assemelha agora ao que tivemos em 1999, depois da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Como aconteceu com o FHC em 1999, depois da desvalorização do real, Dilma começa o segundo mandato sob forte pressão e sem a força que o presidente normalmente tem no primeiro ano de mandato. Pelo contrário, o governo está na defensiva. Então, vamos ter algo parecido com o que 1999 representou para o FHC, um ano terrível para ele. Mas 2000 foi um ano muito bom. O Brasil se adaptou à desvalorização e voltou a crescer rapidamente, e o FHC conseguiu passar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Em 2001, houve o apagão, e ele não conseguiu se recuperar mais. Então, o que consigo vislumbrar da situação presente é um governo Dilma na defensiva e acuado em 2015. É possível que o aperto de 2015 acabe se revertendo numa situação mais favorável ao longo de 2016 ou no começo de 2017. Agora, nesse período de um ano, um ano e meio, o governo vai estar inteiramente na defensiva. E isso significa que quem está na ofensiva é o peemedebismo.
ÉPOCA – Eduardo Cunha pode aceitar um pedido de impeachment de Dilma?
Nobre – Não interessa a ele o impeachment da Dilma. O Cunha está com a faca e o queijo na mão. Ele quer que o governo atenda a suas demandas e de sua bancada, que é enorme e passa por todos os partidos. Qual seria a vantagem de tirar uma presidente que ele tem condições de pressionar? Não há nenhuma. Quando você aceita o processo de impeachment, você perde o controle, porque se torna uma disputa política que abrange toda a sociedade. A melhor coisa do mundo é ficar com essa espada na cabeça da Dilma o tempo inteiro.
ÉPOCA – O que Eduardo Cunha fará com o poder que acumulou?
Nobre – Vai fazer tudo aquilo que for necessário para manter a hegemonia do PMDB e reorganizar o sistema político contra a política da Dilma de aumentar a fragmentação. Vou dar um exemplo. O Supremo Tribunal Federal já tinha a votação da maioria, 6 a 1, contra o financiamento privado das campanhas políticas. Qual foi o primeiro ato dele como presidente? Colocar em votação uma reforma política que permite a doação privada e impede a criação de novos partidos. Ao mesmo tempo, ele não fará aquelas reformas mínimas que permitiriam que o sistema se organizasse de maneira positiva, como a proibição de coligação em eleição proporcional ou a cláusula de barreira. Eduardo Cunha quer impedir o processo de fragmentação partidária, mas não no sentido produtivo de aprofundar a democracia e criar uma bancada de situação e outra de oposição que reflita a polarização da eleição presidencial.
ÉPOCA – Por que o governo resolveu partir para o confronto com Eduardo Cunha, se a derrota era anunciada? O PT ficou até sem representantes na Mesa da Câmara.
Nobre – O governo, como tal, não partiu para esse confronto. Foram setores do PT. Havia a posição do Lula, que era fazer um acordo com o Eduardo Cunha lá atrás – e ele foi ignorado. Isso significa que a posição do Lula no governo se fortaleceu. Agora, ele está dizendo: “Eu avisei, e mesmo assim vocês partiram para uma operação suicida”. O PT está entrando num momento muito difícil do ponto de vista da identidade do partido. Ele será responsável por um governo que vai operar a reboque do PMDB. Teremos uma situação em que a presidente é a Dilma, mas quem tomará as decisões finais, do ponto de vista político, é esse novo PMDB, tendo como satélites todos esses pequenos partidos. Não será um governo liderado pelo PT, apesar de a presidente ser do PT. Isso está provocando uma crise enorme dentro do partido e divisões internas. Isso é muito grave.
ÉPOCA – Como entra o presidente do Senado, Renan Calheiros, nessa equação?
Nobre – O papel dele vai ser decisivo. Qual é a saída que o governo tem? Continuar apostando na fragmentação partidária não vai dar, porque o Cunha já disse que isso não vai acontecer. A saída é apostar na divisão entre Câmara e Senado. Desde o governo FHC, a bancada do PMDB na Câmara e a bancada do PMDB no Senado não se entendem. São dois partidos diferentes dentro do próprio partido. O Renan é adversário do Eduardo Cunha. Agora, eu pergunto uma coisa: e se o Eduardo Cunha fizer um acordo com o Renan?
ÉPOCA – Devolvo a pergunta. E se?
Nobre – Seria algo inédito desde o governo FHC, certo? Se por acaso o Cunha e o Renan fazem acordo, aí o governo vai enfraquecer a um ponto muito preocupante. Se você olhar de um ponto de vista frio, o que mais interessa ao PMDB é isso. Quando foi a última vez que o PMDB dominou a política brasileira? Na época do doutor Ulysses Guimarães. Se Cunha e Renan chegarem a um acordo, teremos uma situação muito semelhante à do governo Sarney, com a diferença, claro, de que o PT tem uma base social importante e nunca chegaria ao ponto da fraqueza do governo Sarney. A comparação com o governo Sarney vale só como imagem – de um governo que não consegue governar.
Fonte: Época
Por Guilherme Evelin
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