domingo, 26 de abril de 2015

No socialismo venezuelano, agora há o risco de acabar a comida e os remédios


O que é mais impressionante quando se considera todo o surrealismo da atual situação da Venezuela é que tudo já está virando rotina. As pessoas parecem não mais ter a capacidade de se indignar.

A furiosa hiperinflação que assola o país desde 2013, combinada com uma política de racionamento e de controle de preços implantada pelo governo, esvaziou as prateleiras dos supermercados do país. Itens básicos e rotineiros como xampu, farinha, açúcar, detergente, óleo de cozinhar e o já famoso papel higiênico se tornaram tão escassos no país, que os venezuelanos hoje têm de pedir permissão para faltar ao trabalho e assim poder ficar o dia inteiro em longas filas nas portas dos poucos supermercados que ainda têm tais produtos à venda.

Além daqueles que se ausentam do trabalho, também há aqueles que acordam de madrugada para ir para as filas. E há aqueles que vão para as filas no horário do almoço. Os venezuelanos estão o tempo todo enviando mensagens de texto no celular para dar informações sobre filas.

Com uma moeda inconversível e que ninguém quer portar, com uma inflação de preços estimada em 327% ao ano, e com rígidos controles de preços, toda a distribuição de alimentos na Venezuela foi colocada sob supervisão militar desde o início de fevereiro.

Segundo essa matéria de capa do Times, enquanto os venezuelanos se aglomeram em filas que normalmente acumulam mais de mil pessoas apenas para conseguir comprar comida, "soldados armados pedem as carteiras de identidade para se certificarem de que ninguém está comprando itens básicos mais de uma vez na mesma semana".

E prossegue:

Todas as compras feitas pelos venezuelanos são computadas em um sistema de dados para garantir que cada consumidor não tente comprar os mesmos produtos racionados em um período menor do que sete dias.

Soldados patrulham as filas fora dos supermercados, policiais da guarda bolivariana ficam dentro dos supermercados, e funcionários públicos conferem as carteiras de identidade à procura de falsificações que poderiam ser utilizadas para driblar o sistema de racionamento. Procuram também por imigrantes com visto expirado. Um funcionário público da imigração grita alertando que transgressores serão presos.

[...]

O governo enviou tropas para patrulhar as enormes filas que se estendem por várias quadras. Alguns estados proibiram as pessoas de esperaram fora dos supermercados ao longo das madrugadas, e funcionários do governo estão de prontidão perto das portas de entrada e saída, prontos para prender qualquer um que tenta driblar o sistema de racionamento.


O curioso, no entanto, é que, bem ao estilo da tradição socialista, tudo isso é visto como um exemplo de "boa organização". Além dessa exigência de pedir documentos para evitar que as pessoas comprem mais de uma vez por semana, as autoridades estão ordenando os supermercados a permitirem que os clientes formem filas nos estacionamentos subterrâneos, pois assim eles não correriam o risco de sofrer queimaduras de sol.

Segundo reportagem da BBC:

Jornalistas são proibidos de filmar ou tirar fotos das prateleiras vazias. Já os consumidores também estão sob instruções rígidas. Você só pode comprar bens escassos em dias específicos da semana, dependendo do número final na sua carteira de identidade. Sendo assim, se, por exemplo, a sua carteira de identidade termina em zero ou em um, você só pode ficar em uma fila às segundas-feiras. E, ainda assim, isso não significa que o sabonete e o leite que você quer comprar estarão necessariamente disponíveis naquele dia.

[…]

É comum ver pessoas entrando em filas sem nem sequer saber o que está à venda. Elas simplesmente veem a fila, entram nela e então perguntam a quem está imediatamente à frente para o que é aquela fila. E é extremamente provável que essa pessoa à frente também tenha feito exatamente o mesmo com a pessoa que está à frente dela.

Testemunhamos uma fila que só se movia quando algumas pessoas que já estavam lá na frente desistiam de esperar e iam tentar a sorte em outro lugar. Isso significa que as pessoas que estavam lá no fim da fila, dobrando a esquina, não viam isso, e acreditavam enganosamente que estava havendo algum progresso e que a fila de fato estava se movendo. E isso as estimulava a permanecer na fila por mais tempo.

Só que, para tragédia geral, essa fila não era para absolutamente nada. Simplesmente ouviu-se um rumor de que o supermercado em questão havia recebido uma remessa de algo — ninguém sabia o quê —, e isso bastou para que se formasse uma fila. No final, não havia nada. Apenas mais um dia perdido.


Nessa interessante reportagem, um jornalista da BBC mostra quanto tempo é necessário para comprar apenas 8 itens básicos na Venezuela:

(SPOILER ALERT: ele só consegue comprar 3, tendo de recorrer ao mercado negro para conseguir o resto; e só no dia seguinte).

Sem comida e sem remédios

Há outro fantasma ameaçando levar ainda mais terror para os venezuelanos: a escassez de dólares no país.

A queda no preço do petróleo, o principal item exportador da Venezuela, reduziu brutalmente a entrada de dólares no país. E dado que a moeda venezuelana, o bolívar, é inconversível — nenhum estrangeiro está disposto a trocar sua moeda pelo bolívar, pois não há investimentos atrativos na Venezuela —, nenhum empreendedor na Venezuela está tendo acesso a dólares.

A única entidade na Venezuela que ainda tem dólares é o governo, e é ele quem decide qual empresa pode receber dólares para importar bens. No momento, por causa de sua escassez, a ração de dólares está suspensa.

Consequentemente, a importação de itens básicos está suspensa.

"Há uma forte tempestade se formando devido à falta de dólares. A situação é desesperadora e pode piorar ainda mais", diz Russ Dallen, chefe do Caracas Capital Markets, um banco de investimento local. Russ está há vários anos acompanhando de perto a situação da Venezuela. "Nos próximos dois ou três meses, haverá um grande desabastecimento, muito pior do que estes que estamos vivenciando — não apenas porque os estoques já estão muito baixos, mas também porque a importação de produtos que só serão demandados daqui a 8-12 semanas não está entrando no país."

Segundo reportagem do Latin America Herald Tribune:

"Os estoques, inclusive os das indústrias farmacêutica e alimentícia, estão chegando a níveis críticos", disse Eduardo Garmendia, presidente da Confederação Venezuelana das Indústrias (Conindustria). "Todo o sistema já está sendo afetado pela dificuldade de se conseguiu matérias-primas, mas tudo é ainda pior no quesito bens essenciais, pois estes estão sofrendo um impacto direto; estamos falando de remédios e comida".

No caso dos alimentos, os estoques das principais indústrias do país irão durar menos de um mês, de acordo com dados publicados pela Câmara Venezuelana da Indústria de Alimentos (Cavidea).

"Há empresas de alimentos que, até hoje, neste ano, ainda não conseguiram um único dólar", disse Pablo Baraybar, presidente da Cavídea. "Em algumas linhas de produção, temos estoques para apenas mais 10 ou 20 dias".

Isso certamente tornará as coisas exponencialmente mais difíceis para aqueles venezuelanos que sofrem diariamente para colocar comida em suas mesas.

O que pode ocorrer daqui a apenas algumas semanas é a total paralisação do país após o esgotamento de todos os estoques, pois as empresas não estão recebendo do governo os dólares necessários para pagar pelas importações.

[...]

É por isso que o governo venezuelano vem fazendo uma intensa propaganda sobre a possibilidade de que a China esteja disposta a fornecer um empréstimo de US$ 10 bilhões para projetos de infraestrutura na Venezuela.

"O governo está a todo o momento dizendo 'os chineses estão vindo, os chineses estão vindo; os chineses são os únicos que podem nos salvar desse martírio", disse Russ Dalen.

Só que, quando o dinheiro chinês chegar — caso isso realmente ocorra —, ele só poderá ser utilizado para importar produtos da China ou ser investido em projetos específicos previamente aprovados pelos governos venezuelano e chinês, o que não necessariamente irá trazer alívio para os milhões de venezuelanos, que, dentro de poucos meses, não mais conseguirão obter leite e farinha nas prateleiras dos supermercados após passarem o dia inteiro na fila.


Segundo o The New York Times, o suprimento de remédios está acabando. Salas de cirurgia estão fechadas há meses, não obstante centenas de pacientes estejam na fila de espera para cirurgias. Em uma clínica privada, um cirurgião conseguiu manter a sala de cirurgias funcionando porque conseguiu contrabandear dos EUA, sem que o governo venezuelano soubesse, remédios essenciais.

Paralelos com a Romênia

É interessante constatar que, ao redor de todo o globo, os fracassos do socialismo não apenas se originam das mesmas causas, como também tendem a se manifestar de maneiras incrivelmente similares.

Aproximadamente 30 anos atrás, do outro lado do Oceano Atlântico, os romenos também tinham o hábito de passar várias horas parados em filas que se formavam perante prateleiras vazias. A diferença é que, para os romenos, tal situação rotineira já havia deixado de ser uma mera "crise temporária", que é como a atual situação da Venezuela ainda é descrita pelo governo. Tudo já era tristemente rotineiro.

E, assim como o governo da Venezuela se gaba de sua "boa organização" para controlar as filas dos supermercados e impedir que as pessoas comprem duas vezes na mesma semana, o regime comunista da Romênia, que já estava no poder havia mais de duas décadas, dizia que o racionamento de alimentos era uma medida voltada para promover a saúde e melhorar a qualidade de vida!

Por exemplo, o ditador Nicolau Ceausescu instituiu, em 1982, um "programa de alimentação científico/racional" para o país, no qual quantidades de leite, ovos, carne, peixe etc. eram listadas, ao mesmo tempo, como recomendações de dieta e quotas permitidas para a compra. À medida que o tempo foi passando, essas rações se tornaram cada vez mais escassas.

A gasolina também foi racionada em apenas 25 litros por mês, e a fila para conseguir o combustível frequentemente envolvia um esforço conjunto, no qual dois amigos se revezavam na fila em turnos diários, dentro do mesmo carro, esperando seu momento para abastecer. Enquanto um ficava na fila, o outro ia trabalhar.

E para garantir que os romenos não iriam consumir muita gasolina, o governo adotou um rodízio, segundo o qual os carros não poderiam circular nos fins de semana dependendo do número final de suas respectivas placas.

Por fim, dado que os meses de inverno na Romênia são muito piores do que os da Venezuela, aquecimento e água quente só estavam disponíveis durante algumas horas do dia. Assim como televisão e eletricidade.

À época, as autoridades comunistas gostavam de se gabar dizendo que os cidadãos romenos usufruíam todos os benefícios da vida moderna, mas nenhuma de suas injustiças. O regime de Nicolás Maduro também emite opiniões similares sobre o Ocidente — que represente seu suposto inimigo, a epítome do capitalismo cruel, e o único culpado pelas tribulações do país.

No entanto, em ambos os casos, é o socialismo que está fadado a terminar em colapso e na total destruição da atividade econômica, bem como na desintegração de todo o tecido social. Se a atual situação da Venezuela ainda impressiona alguém, é porque falta conhecimento econômico e histórico. Se o exemplo venezuelano das consequências inevitáveis do socialismo ainda surpreende, isso só mostra como as lições econômicas e históricas são rapidamente esquecidas.

Fora essas lições, resta-nos apenas a esperança de que os venezuelanos, no futuro, irão se lembrar com algum humor dos bizarros momentos deste período. Nos 50 anos em que viveram sob o comunismo, os romenos criaram um vasto folclore de piadas jocosas, muito provavelmente como uma válvula de escape para lidar com a situação tenebrosa em que viviam. Eis uma delas:

O filho de um medalhão do Partido Comunista da Romênia foi estudas nos Estados Unidos. Tão logo chegou aos EUA, ele enviou um curto telegrama ao pai: "Vida longa ao Partido Comunista, já que eu nunca irei retornar."





Por
Carmen Dorobat
Pós-doutoranda em economia na Universidade de Angers e professora na Bucharest Academy of Economic Studies.

Leandro Roque
Editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

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