terça-feira, 16 de dezembro de 2014

As consequências políticas e culturais da inflação


Pode parecer atípico um economista falar sobre cultura. Normalmente, nós economistas falamos sobre preços e produção, sobre quantidades produzidas, sobre emprego, sobre a estrutura de produção de uma economia, sobre recursos escassos, e sobre empreendedorismo.

Mas há certas coisas que economistas podem dizer sobre a cultura; mais precisamente, sobre atransformação da cultura.

O que é cultura? Colocando de maneira simples, é a maneira como fazemos as coisas. Isso inclui a maneira como comemos — se jantamos ou não com nossa família regularmente, por exemplo —, como dormimos e como utilizamos automóveis ou outros meios de transporte. E, é claro, a maneira como produzimos, consumimos ou acumulamos capital também são aspectos importantes da cultura.

Limitar o orçamento é o segredo para limitar os governos

Para entender os efeitos da inflação, é necessário primeiramente analisarmos a relação entre os sistemas financeiros e a natureza do governo.

Um grande número de economistas já enfatizou que a adoção de um papel-moeda fiduciário e de curso forçado — isto é, um dinheiro de papel que pode ser impresso livremente pelo governo e cuja aceitação é obrigatória pelos cidadãos — é um pré-requisito para que haja um governo tirânico. A ideia de que o intervencionismo monetário pavimenta o caminho para um governo tirânico é tão antiga que remonta ao filósofo matemático Nicolas de Oresme, no século XIV.

Essa ideia não foi devidamente enfatizada no século XX, mas Ludwig von Mises esteve entre aqueles poucos que salientaram a importância dessa relação. Mises disse que, no que diz respeito a limitar o poder governamental, é essencial que o governo seja financeiramente dependente de seus cidadãos. E isso passa pelo fundamental problema político de se controlar os indivíduos que ocupam os altos cargos do poder.

Sabemos que, no geral, uma vez no poder, políticos eleitos tendem a fazer coisas bem diferentes daquelas que prometeram fazer quando estavam na campanha eleitoral; vários deles inclusive agem contrariamente aos interesses de seus eleitores.

Sendo assim, como garantir que os indivíduos que estão no poder — políticos e burocratas — sejam controlados?

Mises afirma que a maneira de controlar o governo é por meio do orçamento. Mais ainda: tal vigilância é crucial para a sobrevivência de uma sociedade livre.

Em um sistema democrático, determinadas pessoas são eleitas para o governo e elas frequentemente assumem seus cargos acreditando ter um mandato para fazer determinados tipos de coisas enquanto estiverem no poder. Mas não basta que o povo diga aos funcionários do governo o que eles devem fazer. É igualmente importante, se não mais importante, ditar quanto de dinheiro o governo disporá para alcançar esses objetivos.

Sendo assim, não basta dizer ao governo que sua única tarefa será proteger a propriedade privada. Tal objetivo poderia ser alcançado tanto com um orçamento de $100.000 quanto com um de $1 bilhão. Tudo depende do quanto as pessoas estão dispostas a pagar. Portanto, se o orçamento do governo não for efetivamente controlado, um mandato de quatro anos, por si só, não oferece nenhuma limitação à tributação ou à quantidade de dinheiro que o governo irá gastar.

Mises acreditava que aqueles que efetivamente pagam os impostos deveriam limitar, de maneira específica, o tamanho do orçamento do governo. O governo não pode determinar autonomamente a quantidade de dinheiro que ele irá utilizar em sua função.

É provável, no entanto, que várias pessoas reclamem que, se o orçamento do governo for rigidamente controlado, então jamais haverá um aumento na quantidade de serviços estatais oferecidos, pois os cidadãos odeiam pagar impostos. Isso até poderia vir a ocorrer; porém, e obviamente, este é justamente o objetivo.

Por outro lado, se abandonarmos essa estrita conexão entre o tanto que os cidadãos pagam de impostos e o tanto que o governo gasta, iremos nos afastar de um modelo em que o governo é controlado pelos cidadãos que são tributados e iremos nos encaminhar para um modelo em que o governo é efetivamente gerido pelas elites.

A primeira maneira como essa mudança pode ocorrer é com o governo se endividando de maneira crescente. Ao fazer isso, a relação governo/governado irá pender para o grupo que está financiando o governo — a saber, aqueles que estão concedendo empréstimos para o governo. Isso, por conseguinte, irá enfraquecer a relação entre governo e cidadãos tributados, e irá também permitir que o governo gaste mais dinheiro do que poderia gastar caso dependesse apenas da tributação.

[Nota: com a recente alteração da Lei de Diretrizes Orçamentárias, que na prática liberou o governo federal para se endividar mais e gastar independentemente de suas receitas tributárias, o tiro de misericórdia no último bastião de resistência à tirania estatal foi disparado].

É óbvio que a existência de um papel-moeda fiduciário e de cunho forçado permite que o governo tome empréstimos de maneira virtualmente ilimitada, pois o dinheiro fiduciário pode, por definição, ser produzido sem limites — comerciais ou tecnológicos — e em qualquer quantidade desejável. Para isso, o governo se beneficia do apoio dado por um Banco Central.

E é esperado que tal apoio ocorra, pois o próprio Banco Central existe para isso e usufrui de um monopólio legal concedido pelo governo.

Ao permitir que o governo adquira receitas que não sejam oriundas da tributação direta da população, o dinheiro fiduciário permite que haja uma expansão das atividades do governo sem o consentimento daquela fatia da população que efetivamente paga os impostos.

Mais ainda: permite que o governo cresça de uma forma desconectada do desejo da população de realmente permitir um aumento das receitas do governo.

O gerenciamento do governo passa então a ser controlado pelas elites do mercado financeiro — fundos de investimento, sistema bancário e Banco Central, o qual existe para proteger os bancos — e não pelos cidadãos trabalhadores e pagadores de impostos.

E a capacidade do governo de aumentar seus gastos se torna mais dependente de sua capacidade de conseguir empréstimos dos financistas do que de sua capacidade de convencer os cidadãos a aceitar o fardo de uma carga tributária maior.

As características culturais de uma economia baseada no endividamento

E assim podemos perceber as várias maneiras como um sistema de dinheiro fiduciário afeta o comportamento dos cidadãos comuns.

Uma das características centrais de um sistema de dinheiro fiduciário é que ele tende a gerar uma inflação de preços permanente. Isso contrasta acentuadamente com o funcionamento de uma economia baseada em um dinheiro natural, como o ouro ou a prata. Sob um sistema de dinheiro natural, a inflação de preços tende a permanecer nula no longo prazo, ou até mesmo apresentar uma deflação, especialmente se estiver ocorrendo um vigoroso crescimento econômico. Isso ocorreu durante o século XIX tanto na Europa quanto nos EUA, onde o crescimento com deflação de preços foi a regra.

Viver sob uma contínua inflação de preços afeta o comportamento e a cultura de uma sociedade de variadas maneiras, e isso quase sempre foi feito de forma deliberada. Entre os ideólogos e planejadores governamentais de todos os tipos, mesmo antes de Keynes, sempre foi uma constante a ideia de que pessoas comuns deveriam ser impedidas de "entesourar" dinheiro em suas casas.

Em uma economia livre, na qual o sistema monetário é formado por um dinheiro natural, há um forte incentivo para poupar dinheiro mantendo-o em casa, sob sua posse direta e sob seu imediato controle. Investimentos em contas bancárias ou em outras aplicações relativamente seguras também ocorrem, mas manter dinheiro em casa é a principal forma de poupança, especialmente entre as famílias de baixa renda.

Em contraste, quando há uma contínua inflação de preços, como ocorre em um sistema monetário fiduciário, guardar dinheiro em casa se torna uma atitude suicida, pois a inflação de preços — a qual gera uma contínua desvalorização da moeda — aniquila o poder de compra da poupança.

Nesse cenário, estratégias financeiras alternativas se tornam mais aconselháveis. Passa a ser mais prudente aplicar seu dinheiro em "produtos financeiros" apenas para compensar a perda do poder de compra do dinheiro. Também passa a ser interessante se endividar e se alavancar para investir em determinados produtos do mercado financeiro.

Em suma, passa a ser racional buscar investimentos mais arriscados com o intuito de encontrar uma taxa de retorno que seja igual ou superior à taca de inflação de preços. E isso vale para todos os setores da economia, desde a dona de casa até empresas produtivas.

Antes do século XX e da disseminação do dinheiro fiduciário, o endividamento era algo raro e nada corriqueiro. Havia um imperativo cultural contra o ato de se endividar para consumir. O crédito para as famílias, por exemplo, era praticamente desconhecido antes do século XX, e somente famílias muito pobres recorriam ao endividamento para financiar seu consumo.

Já em um sistema monetário fiduciário, à medida que a inflação de preços vai diminuindo o poder de compra da poupança de um indivíduo, ele não tem escolha senão adotar uma perspectiva de curto prazo. Ele terá de ou virar um especialista no mercado financeiro para investir seu dinheiro corretamente, ou ele terá de se apressar em obter crédito o mais rápido possível e auferir receitas desse endividamento o mais rápido possível, pois sua poupança perderá poder de compra caso ele decida apenas guardar seu dinheiro em casa.

Não mais faz sentido poupar durante uma década para comprar um imóvel, por exemplo. É muito mais oportuno se endividar para comprar um imóvel imediatamente e quitar a dívida ao longo do tempo, com um dinheiro já desvalorizado. Isso gera uma corrida para a alavancagem, uma vez que o investimento financiado por dívida gera retornos maiores do que simplesmente poupar em dinheiro ou fazer investimentos financiados por capital próprio.

Desnecessário enfatizar que essa tendência não possui um ponto final. Em outras palavras, sistemas monetários fiduciários tendem a deixar as pessoas insaciáveis em sua busca por retornos monetários cada vez maiores para seus investimentos.

Em um sistema monetário natural, à medida que a poupança aumenta, a taxa de retorno sobre todos os tipos de investimento diminui. Passa ser menos interessante investir a poupança para tentar auferir algum retorno, pois este será baixo. Consequentemente, outras motivações ganham mais proeminência. A poupança será cada vez mais utilizada para financiar projetos pessoais, inclusive a aquisição de bens de consumo duráveis e até mesmo atividades filantrópicas. Foi exatamente isso o que aconteceu no Ocidente durante o século XIX.

Por outro lado, em uma sociedade gerida por um sistema monetário fiduciário, os indivíduos estão mais propensos a aumentar seus retornos financeiros por meio do contínuo endividamento e de uma crescente alavancagem.

[Nota do IMB: esse fenômeno da contínua desvalorização da moeda gerou um agigantamento do setor financeiro — pois as pessoas, afinal, têm de adotar alguma medida para proteger o poder de compra da sua poupança —, criando justamente aquilo que os críticos do capitalismo chamam de "financeirização" da economia, arranjo em que os mercados financeiros adquirem importância central, deixando o setor produtivo, que é quem genuinamente gera riqueza, em segundo plano.]

É possível imaginar, portanto, como esse sistema baseado na inflação monetária e no endividamento irá, ao longo do tempo, alterar a cultura e o comportamento de toda uma sociedade. As pessoas irão se tornar mais materialistas do que seriam sob um sistema monetário natural. Elas não mais poderão apenas guardar seu dinheiro em casa, terão de monitorar suas aplicações bancárias constantemente, e terão de pensar em juros e em rentabilidade continuamente — caso contrário, se a rentabilidade não for alta o bastante, elas estarão na prática ficando mais pobres.

O fato de que o sistema monetário fiduciário empurra as pessoas para investimentos mais arriscados também aumenta a dependência sobre terceiros, pois cada indivíduo passa agora a depender do bom comportamento daqueles de quem o valor de seus investimentos depende.

Similarmente, quanto mais alto o nível de endividamento mais acentuada é nossa preocupação egoísta com o comportamento de terceiros que estejam nos devendo dinheiro. Desta forma, o dinheiro fiduciário cria uma tentativa de controlar o comportamento de terceiros por meio do sistema político.

Porém, ao mesmo tempo, nenhuma família e nenhuma empresa possuem interesse individual em abolir o sistema de dinheiro fiduciário e substituí-lo por um sistema monetário natural. Os custos de curto prazo de tal transição seriam enormes. Sendo assim, podemos dizer que estamos em uma "armadilha da racionalidade", na qual as pessoas são motivadas a manter o atual sistema monetário fiduciário apesar de todas as suas desvantagens, e também porque a cultura já foi irremediavelmente transformada por mais de um século de acesso fácil ao crédito e ao dinheiro fiduciário.

Conclusão

Podemos aplicar a análise econômica para explicar transformações culturais, e um exemplo particularmente importante é o do dinheiro fiduciário. Ele possui um impacto crucial sobre nossa cultura. E isso é algo que não veríamos caso não adotássemos uma perspectiva histórica de longo prazo.

É claro que há vários outros fatores que também influenciam, mas o dinheiro fiduciário é um fator crucial, e o atual sistema é perpetuado pelo fato de que todos têm muito a perder no curto prazo caso ele seja substituído. No que mais, considerando que nossa cultura moderna foi profundamente moldada pelos sistemas monetários fiduciários, aboli-lo ou simplesmente alterá-lo iria contra as próprias fundações culturais de nossa atual sociedade.

Não obstante os vários custos de curto prazo, ainda assim deveríamos ousar em alterar tal sistema. Em última instância, é uma questão de coragem, percepção e vontade.





Por Jörg Guido Hülsmann

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