segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A origem do estado: o monstro frio e conquistador

                                                                                                                        Franz Oppenheimer

“Poucas pessoas são motivadas a questionar a legitimidade das instituições estabelecidas.” (George H. Smith)

O Estado tem sua origem na conquista, e se mantém através da exploração. Eis a tese que Franz Oppenheimer defende em seu livro The State. Essa tese encontra eco em diferentes autores, incluindo Nietzsche, que acreditava que o Estado se origina na forma mais cruel de conquista. Para o criador de Zaratustra, o Estado, esse “novo ídolo”, seria o “mais frio de todos os monstros frios”, e mente quando diz “Eu, o Estado, sou o povo!”. Nietzsche é direto: “Destruidores, são os que preparam armadilhas para muitos e as chamam Estado; e suspendem por cima deles uma espada e cem cobiças”. Para ele, qualquer coisa que o Estado possua, “roubou-a”.

David Hume é categórico ao afirmar: “Quase todos os governos que existem hoje ou dos quais existem registros na história se fundaram na usurpação ou na conquista, ou em ambas, sem pretensão alguma de um consentimento legítimo ou de uma submissão deliberada do povo”. Ele notou que muitos se submetem ao governo que se encontra já estabelecido no país onde vivem, sem pesquisar com muita curiosidade as origens de seu estabelecimento inicial. Poucos governos suportariam um exame rigoroso deste tipo.

Ele diz: “A obediência e a submissão se tornam uma coisa tão costumeira que os homens, em sua maioria, jamais procuram investigar as suas origens ou causas, tal como ocorre em relação à lei da gravidade, ao atrito ou às leis mais universais da natureza”. A ignorância sobre as intenções dos outros mantém todos amedrontados, e nisso reside a segurança do líder. “Foi por meio de artifícios assim que se fundaram muitos governos, e a isto se pode resumir todo ocontrato original de que podem se vangloriar”, diz Hume. Com o tempo, o governo irá adquirir uma aura de legitimidade, e a maioria das pessoas vai obedecê-lo por puro hábito. O consentimento é possível somente quando há escolha, e nenhum governo pode permitir que a obediência seja uma questão de escolha.

Para Oppenheimer, existem basicamente duas formas de organização da vida social: o meio econômico, que é pacífico por depender de trocas voluntárias; e o meio político, que é baseado na dominação e, portanto, é essencialmente violento, por ser uma apropriação não solicitada do trabalho dos outros. O Estado surgiria numa sociedade quando algumas pessoas utilizam os meios políticos para vantagem própria. Essas pessoas estariam numa situação vantajosa para forçar certas ações aos demais, e as relações passam a ser calcadas em subordinação e comando.

O Estado seria então o primeiro de todos os aparatos de dominação. Independente do desenvolvimento desse Estado, Oppenheimer repete constantemente que sua forma básica e sua natureza não mudam. Desde o Estado primitivo feudal até a constituição moderna do Estado, ele ainda é a institucionalização dos meios políticos por um determinado grupo para expropriar a riqueza econômica de outros.

Parece auto-evidente que em qualquer grupo de pessoas, grande ou pequeno, existe a necessidade de uma autoridade que julga conflitos e, em situações extraordinárias, assume a liderança. Mas para Oppenheimer, essa autoridade não é o Estado, no sentido que ele usa a palavra. Ele define Estado como uma organização de uma classe dominante sobre outras classes. Esta organização de classes pode surgir somente através da conquista e subjugação.

A formação de classes em tempos históricos não ocorreu através de gradual diferenciação na competição econômica pacífica, mas foi o resultado de conquista violenta. A idéia comum entre burgueses e socialistas estava no conceito do Estado como uma “coleção de privilégios” mantida em violação à lei natural, enquanto a sociedade era vista como uma forma de união humana em conformidade com a lei natural. Os senhores feudais, em contrapartida, desejavam manter ostatus quo, o uso do aparato estatal para seus próprios interesses.

Em todos os lugares onde o desenvolvimento de tribos atingiu uma forma mais elaborada, segundo Oppenheimer, o Estado cresceu pela subjugação de um grupo por outro. Sua justificação básica, sua raison d’etre, estava e está na exploração econômica desses subjugados. Os nômades conquistavam grupos e mantinham escravos. Eles foram os inventores da escravidão, e, portanto, plantaram as sementes do Estado, a primeira exploração econômica do homem pelo homem.

Fazia mais sentido poupar os inimigos capturados e usá-los como escravos no pasto, daí a transição da matança dos vencidos para sua escravização. Com a introdução de escravos na economia tribal das hordas, os elementos essenciais do Estado já estão presentes, exceto a delimitação dos limites territoriais. O Estado aparece como uma forma de domínio, e sua base econômica é a exploração do trabalho humano. Sempre que a oportunidade aparece, e o homem possui a força para tanto, ele prefere o meio político ao econômico para preservar sua vida.

Após a conquista, os estágios diferentes vão gradualmente levando a uma mudança de percepção dos conquistados. Eles começam a se acostumar com a horda conquistadora, e passam a vê-la como seus protetores em relação às ameaças externas. Os hábitos vão se misturando, a língua vai virando uma só, e surge o sentimento de unidade, que cresce com o sofrimento comum, a vitória comum, a derrota comum. Ambos os diferentes grupos étnicos acabam juntos numa mesma terra, e as disputas que surgem com outros clãs ou outras vilas fortalecem esta união.

Os senhores assumem o direito de arbitrar, e quando necessário, forçar seu julgamento sobre os servos. O conceito de nacionalismo vai evoluindo, e aparece a necessidade cada vez mais freqüente de interferir, punir ou exigir obediência pela coerção. Assim se desenvolvem os hábitos que serão utilizados pelo governo, conforme explica Oppenheimer.

O interesse comum em manter a ordem e a paz produz um forte sentimento de solidariedade, que pode ser chamado de uma consciência em pertencer ao mesmo Estado. O homem passa então a racionalizar tal desejo, e justifica a moralidade do método político usado para a formação do Estado. O grupo que controla o meio político passa então a desfrutar de certa legitimidade.

Não é preciso concordar com toda a teoria de Oppenheimer sobre a origem de Estado para perceber que este irá sempre ser sinônimo de coerção, de força. Enquanto o meio econômico é o meio das trocas voluntárias entre indivíduos, o meio político é o meio da imposição através do monopólio do uso da força. Quando estudamos casos históricos de Estados e suas origens, esta noção fica mais clara ainda.

Portanto, o ideal será sempre tentar reduzir ao máximo possível a esfera política, o poder do Estado e seu escopo, cedendo o máximo de espaço possível ao meio econômico, pacífico por definição. Qual é este limite para a ação do Estado é algo que está aberto ao debate, mas somente um ódio muito grande pela liberdade pode explicar a defesa de um tamanho acima do mínimo necessário para garantir a paz e a ordem, assim como as liberdades individuais. Se Estado é força e sua origem está na conquista, defender o menor tamanho possível para esse “monstro” é dever de todos aqueles que amam a liberdade.


Por Rodrigo Constantino

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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