O filósofo e cientista da religião analisa a religiosidade no Brasil e identifica qualidades na postura evangélica de combater o relativismo.
Um dos maiores críticos da moda do politicamente correto, o filósofo e escritor Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé é daqueles intelectuais que parecem não se preocupar muito com as repercussões do que diz. Critica o PT no governo com a mesma acidez com que debocha do sujeito que passa horas no Facebook procurando causas nobres para defender e posar de bom moço. “Para os defensores do politicamente correto, tudo é justificado dizendo que você é pobre, gay, negro ou índio”, ironiza. Pernambucano de 55 anos, graduou-se em Medicina na juventude, mas foi com a Filosofia – na qual chegou ao pós-doutorado – que Pondé se tornou conhecido e respeitado no meio acadêmico. Pela densidade de suas obras, como Conhecimento na desgraça: Ensaio da epistemologia pascaliana ou Crítica e profecia: Filosofia da religião em Dostoiévski, pode parecer à primeira vista um eremita de biblioteca, escrevendo coisas que um simples mortal não compreende. Mas, não – em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, Pondé trata de temas da vida cotidiana e analisa relacionamentos humanos como num papo de mesa de escritório. O intelectual fala até mesmo de futebol, como em Amarelou, texto escrito pouco depois do indescritível vexame brasileiro na Copa do Mundo.
Luiz Felipe Pondé também se destaca no estudo e crítica da religião. Professor de Ciências da Religião na respeitada Pontifícia Universidade Católica, ele tem origem judaica, já foi ateu e hoje flerta filosoficamente com o divino. “Sou basicamente pessimista, cético, descrente, quase na fronteira da melancolia”, admite. Mesmo assim, enxerga no mundo uma beleza e uma misericórdia no mundo que não consegue explicar pelas vias racionais: “Acho Deus a hipótese mais elegante que existe acerca do universo e da vida”. Nesta conversa com CRITIANISMO HOJE – a segunda consecutiva da revista com grandes autores nacionais –, Pondé fala sobre o momento religioso no Brasil, desde as consequências do crescimento evangélico até ao significado da inauguração recente do chamado Templo de Salomão, em São Paulo. “Com ele, a Igreja Universal quer se reposicionar no mercado da fé”, sintetiza, sem rodeios. “Os evangélicos mais éticos sofrem com o efeito de massificação do neopentecostalismo”. Com o perdão do lugar-comum, a entrevista é imperdível.
CRISTIANISMO HOJE – Que tipo de contribuição a fé evangélica, que a cada dia cresce mais no Brasil, pode trazer a um país onde, até poucas décadas, o catolicismo era praticamente absoluto?
LUIZ FELIPE PONDÉ – Antes de tudo, esse crescimento traz contribuições para o mercado religioso: mais opções e mais competição dentro do espectro cristão. Os evangélicos têm uma história combativa distante da chave marxista, coisa que a Igreja católica perdeu há muito tempo. Eles valorizam a iniciativa pessoal, já que o protestantismo é marcado pela capacidade de produzir riqueza, isso é muito bom para o país. Há um maior aprofundamento da ética cristã clássica, no caso do protestantismo não avivado. Do ponto de vista dos chamados hábitos morais, esse crescimento pode implicar numa guinada conservadora. No geral, eu diria que o enfrentamento do relativismo comum de nossa época, algo típico dos evangélicos, é bom para o debate público.
O que o senhor chama de “guinada conservadora” é, necessariamente, ruim?
O problema é que guinadas conservadoras em moral podem complicar a tolerância entre diferentes, e isso pode ser uma desvantagem. Mas, por outro lado, elas tornam a vivência do Cristianismo no Brasil mais intensa.
Observa-se, nas igrejas e instituições religiosas, de modo geral, um contínuo processo de esvaziamento. Já se fala, hoje, em “evangélicos nominais”, assim como, durante muito tempo, consagrou-se a figura do “católico não-praticante”. O processo de secularização ocidental, por si só, explica o fenômeno?
Acho que o secularismo é, sim, uma das causas. E, também, a distância, muitas vezes observada, entre a religião e as demandas cotidianas da vida contemporânea. Por outro lado, a institucionalização das religiões é mal recebida pela população de maior formação cultural e acadêmica, e isso também é um fato. Por isso, vemos espiritualidades que mesclam elementos de várias crenças, misturando, por exemplo, o Budismo com um “jeito Jesus de ser”, amoroso, tolerante – isso ajuda a aceitar a fé fora ditames institucionais. Há outros fatores que explicam esse esvaziamento. O mundo contemporâneo é pautado por projetos centrados em soluções rápidas e com baixo comprometimento cotidiano. Cria-se uma fé no estilo Facebook, e aí, a tendência é mesmo à diminuição. O Facebook gera pessoas com muitas bravatas e pouco comprometimento.
O senhor fala muito de seu desconforto com a moda do politicamente correto, que inclusive é tema de um de seus livros. A pregação cristã sobre pecado, juízo divino e inferno pode ser considerada o contrário disso. Essa moda não pode acarretar, no médio prazo, uma pressão irresistível sobre a religião?
Já acarretou. O politicamente correto é um fenômeno de mercado. A sociedade de mercado produz forte ressentimento devido à produtividade de uns em comparação com a baixa produção de outros; logo, a noção do politicamente correto ajuda a acalmá-lo. O Cristianismo clássico combate o politicamente correto, porque ajuda a aprofundar a critica à condição humana. Na filosofia, ele continua tendo peso; mas, na pastoral, temo que caia sob a tutela da teologia da prosperidade, associada à sensibilidade mau-caráter do politicamente correto.
O pensamento único, hegemônico, gera o que o senhor já chamou de “dominância burra” e parece ser a tônica, hoje, no Brasil. Quais são os maiores danos desse tipo de ideologia em um país como o nosso, com baixos níveis de instrução e pensamento crítico?
O cultivo do ressentimento, da repressão da iniciativa privada e individual, o ódio de classe e o populismo. Acho que, no caso de uma nova vitória eleitoral do PT, coisa que pode acontecer, inclusive, graças ao voto evangélico, será uma devastação na economia, na liberdade de imprensa e na manutenção de esquemas de corrupção, sustentada no embuste ideológico [N.da Redação: A entrevista foi concedida antes das eleições de outubro].
A passagem do pastor e deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) pela presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, entre março e dezembro do ano passado, provocou uma grita generalizada, sobretudo por conta de grupos de afirmação homossexual. Figuras evangélicas públicas enfrentam feroz resistência toda vez em que se pronunciam contra a homossexualidade, ainda que o façam por convicção pessoal ou de fé. A quem interessa isso?
Para a Igreja Católica, uma instituição cuja base do clero é socialista, os evangélicos são um risco, porque competem pelo mercado cristão. Mas, de outro ponto de vista, na medida em que os evangélicos formam a base do PT, católicos socialistas e evangélicos oportunistas se dão as mãos institucionalmente. Mesmo levando-se em conta a posição intolerante de muitos pastores que representam parte da opinião pública, os gays perderam a batalha, mesmo porque eles também formam, em grande parte, a base o governo. Portanto, acho que conflitos como esses ainda são perfumaria em política. No plano moral, onde há, de fato, o conflito, acho que os evangélicos têm ainda uma forte chance de resistir à chamada cultura gay, mas isso implica em rupturas políticas com partidos como o PT.
O recentemente inaugurado Templo de Salomão, megaconstrução da Igreja Universal do Reino de deus (Iurd) em São Paulo, gerou fortes críticas por promover a mistura de elementos do Judaísmo com a prática cristã, embora se possa criticar o Cristianismo pregado por Edir Macedo. Quais são, em sua opinião, as verdadeiras intenções da Universal com essa mudança de postura?
O Templo de Salomão está reposicionando a marca da Igreja Universal diante da perda competitividade da Iurd no mercado evangélico, que está muito aquecido. Esse reposicionamento se caracteriza pelo imaginário mágico que o Antigo Testamento carrega e pela ideia equivocada de que povo eleito é retribuído com prosperidade. A Universal quer criar seu novo povo eleito, sob a tutela do sumo sacerdote que é muito íntimo de Deus. Ora, ele recriou o templo judeu, e com isso também atrai sobre si mesmo a ideia de que ele está muito próximo do Messias Jesus. Repare que o afastamento do Judaísmo, pregado por Paulo nos primórdios do Cristianismo, também foi um posicionamento de uma “marca” jovem na época – a então recente seita herética judaica do galileu – em uma disputa no mercado de crenças no Império Romano. Mas não creio que certa “judaização” da Igreja Universal a faça perder consistência teológica, uma vez que só se perde o que se tinha um dia...
Isso não pode contaminar as outras correntes evangélicas?
Ainda é cedo para se dizer. Porém, religião é cultura, é promiscuidade simbólica permanente. Um dia, tudo é contaminado por tudo.
A lógica da recompensa divina à obediência, tão presente no Antigo Testamento, está na base da chamada teologia da prosperidade. Ela prega que, se o crente for fiel – através de contribuições financeiras –, necessariamente será abençoado por Deus. Não é uma apropriação desonesta?
A ideia de recompensa, tão inerente à teologia da prosperidade, erra ao entender que a eleição implica em uma dinâmica de retribuição. No Tanach (a Bíblia hebraica), todos os eleitos de Deus sofrem, inclusive Cristo no Novo Testamento. Deus é livre para fazer o que quer e nada nos deve. A Aliança, que nós quebramos, persiste por sua misericórdia, apenas. Acho que o ressentimento típico da herança adâmica se manifesta em toda teologia da retribuição, que é o caso da teologia da prosperidade. Porém, a interpretação na chave retributiva da eleição – a ideia de que Israel é rico e poderoso graças à “magica” do Antigo Testamento – erra porque a história do povo hebreu, apreendida no dia a dia, é de dor e sofrimento. Viver cobrando de Deus a promessa de sucesso e de felicidade é viver em idolatria. Ser eleito pelo Deus de Israel faz de você um sacerdote e de sua vida, um holocausto. A alegria nunca deve ser fruto da lógica retributiva do temor a Deus.
Em um de seus artigos para a Folha de São Paulo, no qual analisou o conflito entre forças israelenses e o grupo islâmico Hamas, o senhor disse que a questão da eleição de Israel por Deus, conforme descrita no Antigo Testamento – e que é a base do sentimento evangélico pró-Israel –, tem sido muito mal interpretada e apropriada, indevidamente, pelo discurso neopentecostal. Pode explicar melhor isso?
Em primeiro lugar, acredito que o apoio dos evangélicos a Israel é corajoso. Ele mostra, independentemente da concordância com suas posições, como o mundo evangélico tem sido uma das últimas resistências ao pensamento único e ao antissemitismo travestido de antissionismo que assola o mundo da mídia e da academia. Quanto à interpretação da eleição de Israel, o Cristianismo, em geral, entende-a mal. A intimidade do povo de Israel com Deus implica menor livre arbítrio do que o dos outros povos. Israel é menos livre. Deus faz uso dele quando quer. Os judeus veem a incompreensão da condição do Estado de Israel hoje como mais uma amostra da solidão de quem tem a mão de Deus sobre sua cabeça.
Figuras midiáticas do segmento neopentecostal, como Edir Macedo, Silas Malafaia e Valdemiro Santiago, entre outros, são vistos, pela sociedade em geral e amplos setores da imprensa, como representantes do movimento evangélico nacional, embora sejam refutados e até condenados por grande número de crentes. Numa sociedade de consumo, em que os veículos de informação, com os mais variados interesses, moldam a opinião pública, como os evangélicos mais preocupados com a ética cristã serão reconhecidos e diferenciados em relação àqueles que fazem da fé um simples instrumento de proveito próprio?
Os evangélicos mais éticos sofrem com o efeito de massificação do neopentecostalismo. Eles têm menos força no mercado de consumo de bens religiosos cristãos. Seu futuro é o futuro de todo mundo que não tem acesso à massificação. As redes sociais podem ajudar um pouco. Creio que um possível caminho é o da produção intelectual e a entrada no debate público de modo erudito, consistente e com elementos da cultura secular. Mais difícil é o preconceito contra evangélicos em geral. Os escândalos envolvendo líderes e políticos evangélicos têm um efeito explosivo como todo efeito de massa associado ao preconceito.
Então, aquela figura do crente como um sujeito correto, confiável e respeitável está definitivamente superada?
Acho que esta imagem está superada. Um misto do crente como o “certinho” reprimido permanece, mas tende a capitular diante dessa outra a outra, ou ficar apenas associada às “igrejas pobres”.
E como fazer para superar esse preconceito social?
Para vencê-lo, massificação neopentecostal não ajuda, porque reforça a imagem de intolerância e abuso da ingenuidade dos fiéis. Acho que os evangélicos mais éticos, como você fala, devem invadir as universidades e ler Nietzsche sem medo.
O senhor diz que deixou de ser ateu, apesar da sua formação em filosofia e toda uma trajetória humanista. Quem é Deus, hoje, para Luiz Felipe Pondé?
Acho Deus a hipótese mais elegante que existe acerca do universo e da vida. Toda vez que vejo a generosidade e a beleza no mundo, sinto que estou diante do milagre. Permaneço filosoficamente ateu, mas, as experiências com a doçura e beleza no mundo me fazem pressentir alguma misericórdia que não sei de onde vem. O que me interessa em teologia é a mística.
A ideia de um Deus criador e sustentador do universo ainda é viável no mundo pós-moderno?
Sim, ela é viável, como mais uma no supermercado de bens invisíveis de sentido para a vida.
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