quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Um grito de liberdade



“Quando fazemos planos para a posteridade, convém lembrarmo-nos de que a virtude não é hereditária.” (Thomas Paine)

Quando se fala da Revolução Americana, um dos primeiros nomes que vem à cabeça é o de Thomas Paine. Seu panfleto Common Sense (melhor traduzido como “bom senso”), escrito no começo de 1776, foi um enorme catalisador dos acontecimentos que levaram à criação da nação mais livre da história. Ele foi lido por mais de meio milhão de pessoas, e influenciou bastante os fatos que se seguiram. Nele, Paine faz duras acusações à monarquia inglesa, chamando inclusive o rei de tirano, e faz também uma bela defesa da liberdade individual.

Influenciado por Newton e Locke, Thomas Paine era um racionalista, filho do Iluminismo, que defendeu a liberdade religiosa. Começou a trabalhar aos 13 anos de idade, ao lado do pai, e foi um autodidata. Foi um pensador com profunda necessidade de ação, e chegou a ir preso em 1793 na França, quando Robespierre e os jacobinos chegaram ao poder. Encarava a causa da independência americana como uma causa de toda a humanidade, pela defesa da liberdade. Escreveu seu panfleto sob a influência apenas da razão e do princípio, conforme ele mesmo declarou.

Logo no começo, Paine tenta desfazer a confusão comum então – e infelizmente ainda existente – que mistura sociedade com governo. Eis as primeiras palavras do texto: “Alguns escritores de tal modo confundiram sociedade e governo, que entre os dois deixaram pouca ou nenhuma distinção; entretanto, não só são diferentes como possuem origens diversas”. Para ele, a sociedade é fruto de nossas necessidades, enquanto o segundo é produzido pela nossa maldade.

“O governo, mesmo no seu melhor estado, não é mais que um mal necessário; e, em seu pior estado, é um mal intolerável”. A segurança seria o verdadeiro propósito e fim do governo, e por isso ele é necessário. Mas por ser sempre coerção, pode ser considerado um mal. Entre um mal maior – a ausência de governo – e um mal menor, fica-se com o menor. Mas não se deve esquecer a origem do governo, que é “um modo que se faz necessário em virtude da incapacidade de a virtude moral vir a governar o mundo”.

Em seguida, Paine faz um ataque fulminante tanto à monarquia como à sucessão hereditária. Ele afirma que o governo dos reis foi introduzido no mundo pelos pagãos, e que os filhos de Israel copiaram o costume. Uma invenção próspera do Diabo, segundo ele, para a promoção da idolatria. Os pagãos prestavam honras divinas aos seus reis falecidos, e o mundo cristão foi mais além ainda, prestando honras divinas aos seus reis vivos. Paine desabafa: “Que heresia o título de sagrada majestade aplicada a um verme que no meio do seu esplendor se desfaz em pó!”. Para Paine, a monarquia é “uma degradação e rebaixamento de nós mesmos”.

Pior ainda, em sua opinião, era a sucessão hereditária, um “insulto e uma imposição à posteridade”. Ele tinha muito claro a idéia de direitos iguais ao nascimento, que seria o marco da Declaração de Independência escrita por Thomas Jefferson. Ninguém pode ter então, por nascimento, o direito “de pôr em perpétua preferência, relativamente às demais, sua família”. Thomas Paine cita o próprio caso de Guilherme, o Conquistador, que era um bastardo francês, e se fez rei da Inglaterra contra a vontade dos nacionais, apoiado por bandidos armados. Não poderia haver nada de divino nisso. “A pura verdade é que a antiguidade da monarquia inglesa não resiste a um exame”. E conclui: “Em resumo, a monarquia e a sucessão cobriram de sangue e de cinzas o mundo inteiro”.

Referindo-se ao evento ocorrido em 1773 em Boston, que ficou conhecido como a “Festa do Chá”, Paine incitou seus concidadãos a rejeitar o domínio inglês, alegando que seria covardia ignorar os fatos. Não pretendia, segundo ele, provocar a vingança, mas sim arrancá-los do “sono fatal e tíbio”, para que pudessem caminhar determinadamente a um objetivo fixado: a independência. Ele escreve: “Repugna à razão, à ordem universal das coisas, a todos os exemplos das eras precedentes, supor que este continente possa continuar por mais tempo submetido a um poder externo”. Paine considerava o mais poderoso argumento em defesa da independência o fato de que somente esta poderia manter a paz e evitar uma guerra civil.

Por fim, Thomas Paine tenta, através de seu discurso em torno dos objetivos comuns, unir os diferentes partidos. Não eram poucos os conservadores da época, ou “legalistas”, que defendiam uma saída diplomática com a Grã-Bretanha. Mas eis o apelo que Paine faz a todos: “Extingamos os nomes de whigs e tories, e que entre nós sejam ouvidos apenas os de bom cidadão, amigo leal e resoluto e virtuoso defensor dos direitos da humanidade e dos Estados livres e independentes da América”.

Com seu panfleto, Thomas Paine foi capaz de mobilizar muitos americanos para a causa da independência. Não obstante, este grande defensor da liberdade, assim como importante ator na conquista da independência, acabou sua vida sendo vítima de hostilidades por parte de muitos americanos. Um dos motivos foi seu livro A Idade da Razão, publicado em 1794 e 1796, com teses radicais e anticlericais. Foi classificado como “infiel” por muitos, e se dizia infeliz nos Estados Unidos no final de sua vida.

Já em Common Sense, defendeu a completa separação entre Igreja e Estado, e pregou que quanto mais diversidade de opinião religiosa existisse, melhor. Para ele, “é um grande perigo para a sociedade uma religião tomar partido em disputas políticas”. Cada habitante da América deveria “desprezar e reprovar” a mistura de religião com política. Estava de acordo com as idéias iluministas. Estava em sintonia com os ideais dos demais “pais fundadores”, aplicados na independência americana.

Mas a liberdade, especialmente a religiosa, não era e ainda não é algo que todos defendem. O grito de liberdade de Thomas Paine, portanto, foi parcialmente abafado. Mas a parte que ecoou foi suficiente para incentivar a revolução mais liberal que já aconteceu na história.

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

Nota do autor: Confesso que hoje, mais conservador um pouco, considero Paine revolucionário, radical e racionalista demais, tanto que flertou com os jacobinos. Sem os freios de um John Adams, a Revolução Americana liderada por Paine e Jefferson poderia ter acabado mal, como a francesa. Mas isso não retira a importância desse “agitador libertário” em sua época. Serviu para “incendiar” a revolta contra a taxação sem representação…






Por Rodrigo Constantino

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