segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Os limites da ação do estado

                                                                                                    Humboldt

“Difícil é promulgar apenas as leis necessárias, permanecer para sempre fiel a esse princípio constitucional da sociedade, precaver-se da fúria de governar – a mais perniciosa doença dos governos modernos.” (Mirebeau)

Qual deve ser o papel do Estado na vida dos cidadãos? Quais devem ser os limites de sua ação? Objetivando responder tais perguntas, Wilhelm von Humboldt escreveu em 1791 seu clássico livro Os Limites da Ação do Estado, que foi publicado apenas após sua morte, em 1850. O prisma principal do autor é a noção de que a liberdade individual garante a espontaneidade das pessoas, fundamental para a criação e para o florescimento da confiança social. Hayek classificou Humboldt como “o maior filósofo da liberdade”, e Lord Acton se referiu a ele como a “figura mais importante da Alemanha”. John Stuart Mill também foi bastante influenciado por Humboldt. Vamos navegar pelas principais idéias desse eminente defensor da liberdade.

Para Humboldt, a verdadeira finalidade do homem, prescrita pelos ditames eternos e imutáveis da razão, e não apenas sugerida por desejos vagos e transientes, “consiste no mais alto e harmonioso desenvolvimento de seus poderes em direção a um todo completo e coerente”. Tal visão já descarta de imediato o estreito foco materialista, comum aos marxistas. Para ele, qualquer coisa que não emirja do livre-arbítrio do homem ou que constitua apenas o resultado da instrução ou orientação não ingressará em seu verdadeiro ser e permanecerá estranho à sua verdadeira natureza. Isso elimina a idéia positivista de Augusto Comte, negando o princípio de que homens devem ser moldados e controlados. Somente a liberdade faz florescer as individualidades do ser humano, justificando este como homem, e não uma simples máquina.

Partindo dessas premissas, Humboldt conclui que qualquer interferência do Estado em assuntos particulares, em que não ocorra qualquer violência aos direitos individuais, deveria ser absolutamente condenada. Os resultados perniciosos de ação extensamente solícita por parte do Estado são ainda mais notavelmente demonstrados na supressão de toda energia criativa e na deterioração necessária do caráter moral. O moral hazard gerado pelo excesso de intervenção estatal é mortal no longo prazo, solapando o genuíno espírito humano, transformando os homens em seguidores autômatos do Estado. Justificando essas interferências pela ótica estritamente utilitarista de conforto material, mesmo que os resultados cheguem perto da intenção, o Estado aniquila as principais características que possibilitam o verdadeiro engrandecimento humano.

Humboldt fala de sua opinião sobre religião e moral no livro. Para ele, “a religião é inteiramente subjetiva e depende exclusivamente da concepção única que cada um tem dela”. Sobre a moralidade humana, até mesmo a mais elevada e substancial, “não é de modo algum dependente da religião, ou necessariamente vinculada a ela”. Investigar, e a convicção que emerge do livre investigar, é espontaneidade; crença, por outro lado, é dependência de algum poder externo, de alguma perfeição externa, moral ou intelectual. É por isso que “existem mais autoconfiança e firmeza no pensador que investiga e mais fraqueza e indolência no crente que confia”. A dúvida é, portanto, tortura apenas para o crente, “mas não para o homem que segue os resultados de sua própria investigação”. Em sua opinião, “investigar e criar são os eixos em torno dos quais mais ou menos diretamente giram todas as buscas humanas”.

A idéia de liberdade negativa, onde é a ausência de coerção humana que caracteriza a liberdade de alguém, está presente na obra de Humboldt também. Escravidão, portanto, seria apenas o uso de coerção física – ou sua ameaça, sendo que através de trocas voluntárias não faria sentido falar em algoz e escravo. Humboldt deixa isso claro quando diz: “O direito nunca é infringido a não ser quando alguém se encontra destituído de uma parte daquilo que apropriadamente lhe pertença, ou de sua liberdade pessoal, sem o seu consentimento ou contra a sua vontade”.

Todos devem ser livres, contanto que tal liberdade não invada a do outro. Justamente por isso deve existir o Estado, garantindo a segurança dos indivíduos, possibilitando assim a manutenção dessa liberdade. Mas o Estado, segundo Humboldt, deve abster-se de todo esforço por interferência positiva no bem-estar dos cidadãos, e não dar nenhum passo além do necessário para garantir-lhes a segurança mútua e a proteção contra inimigos externos. Em suas palavras, “contra-atacar o mal que surge do desejo que o homem tem em transgredir seus próprios limites, e a discórdia produzida por tal apropriação indevida dos direitos dos outros, constitui o objetivo principal da criação do Estado”.



Por Rodrigo Constantino

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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