terça-feira, 9 de junho de 2015

Mito: "Allende escreveu uma tese de doutorado contra o racismo e a eugenia"

                                                                                                              Trecho da tese de Salvador Allende publicada em 1933

O Guia Politicamente Incorreto da América Latina, publicado por mim e o jornalista Duda Teixeira em 2011, recebeu duas críticas recentes. O alvo é o trecho do livro em que falamos das ideias pró-eugenia da tese de doutoramento em medicina de Salvador Allende.

A primeira crítica é do professor Leandro Karnal, historiador de respeito e opiniões moderadas, com quem aprendi bastante e compartilho pontos de vista. Numa palestra na Universidade Federal de Uberlândia, Karnal me acusou de desonestidade intelectual por atribuir a Allende trechos de teóricos racistas europeus.

A outra acusação vem de um grupo bem menos elegante – a página do Facebook “Meu Professor de História”. É uma típica página de “haters” que proliferam na internet – o grupo costuma bloquear quem tem opiniões divergentes, faz acusações odientas contra a pessoa e publica baixarias políticas da pior espécie. (Num post recente, por exemplo, a página nega os crimes de Stálin.)

Tive uma ótima conversa com o professor Karnal dias atrás. Fiquei muito feliz por ele ter entendido minha posição e prometido ter mais cuidado ao falar do trecho do Guia sobre a tese de Allende. Com os autores da página “Meu professor de história” não vou perder tempo – eles dificilmente vão avaliar argumentos com generosidade ou admitir um erro. Mas devo a meus leitores uma resposta às críticas.

Na primeira edição do Guia Politicamente Incorreto da América Latina, é verdade, incluímos o trecho em que Allende fala da predisposição ao crime de árabes, judeus e ciganos, sem deixar claro que o chileno resumia o pensamento do criminalista italiano Cesare Lombroso. Já na edição seguinte, publicada três meses depois da primeira, alteramos o texto para deixar claro que Allende cita Lombroso. Incluímos também a ressalva ao que Allende faz após a citação: “Esses dados nos fazem suspeitar que a raça influencia na delinquência. Não obstante, carecemos de dados mais precisos para demonstrar essa influência no mundo civilizado”. Nos últimos 4 anos, o trecho sobre a tese de Allende está assim:


O professor Karnal afirmou em sua palestra que o estudo de Allende era “uma tese pioneira na década de 30 demonstrando que o racismo é uma imbecilidade”. A página “Meu professor de história” fez uma afirmação semelhante: “a obra de Allende desconstrói a eugenia”.

Isso é um tremendo equívoco. Não há na tese de Allende nenhum ataque evidente ao racismo, nenhuma argumentação desenvolvida sobre isso. O criminalista Lombroso e outros racialistas europeus aparecem diversas vezes ao longo da tese sem que haja uma oposição clara a eles. Na verdade, é muito difícil identificar a mensagem central do estudo.

Depois de ler a tese algumas vezes, concluí que se trata apenas de um trabalho pouco ambicioso, um resumão das teorias da época que explicam a delinquência, sem grandes conclusões ou inovações. O estudo me parece bem alinhado às ideias dos anos 30, relacionando a delinquência à falta de higiene mental, a defeitos no cérebro ou problemas hormonais e hereditários. Médico, Allende dá muito mais peso a origens fisiológicas e hereditárias da violência. No primeiro parágrafo da seção “Medio Ambiente y Delinquencia”, por exemplo, ele deixa claro que o meio ambiente é “factor coadyuvante en la génesis del delito”.

Ao analisar o caso de um homicida de 38 anos, explica sua delinquência por “taras hereditárias pronunciadas (pai alcoólatra, mãe epiléptica)”. No fim do capítulo “Herança”, Allende afirma: “Do exposto se deduz a importância transcendental da herança patológica tem sobre a gênesis do delito”. É o exato raciocínio que justificava a eugenia. Aqui está:


Três páginas após a citação de Lombroso sobre judeus e ciganos, num esquema, uma espécie de resumo do capítulo, Allende faz uma “classificação clínica e psicopatológica dos vagabundos”. O primeiro tipo é: “De origem étnico: judios, gitanos, alguns bohemios, etc”.
No capítulo seguinte, afirma, sem citar ninguém, que “o homossexual orgânico é um enfermo que, em consequência, deve ser tratado como tal”. Aqui:



Não parecem opiniões anti-racistas ou contrárias à eugenia, correto?

Em defesa de Allende se poderia dizer que ele era um personagem de seu tempo. Em 1933, os princípios que fundamentavam a eugenia estavam em voga em universidades do mundo todo. Muitas outras personalidades defenderam a eugenia no começo do século 20 – entre elas o próprio Winston Churchill, que em 1911 disse que deficientes deveriam ser “segregados sob condições apropriadas para que sua doença morra com elas e assim não a transmitam para gerações futuras”.

Mas dizer que Allende escreveu uma tese contra o racismo ou é descuido ou mentira inspirada por convicção ideológica.




Por Leandro Narloch


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