sábado, 29 de agosto de 2015

A volta da CPMF não vai curar a saúde


Acreditar que, desta vez, o dinheiro seria totalmente aplicado no SUS é persistir no pensamento mágico que atrasa o país

A proposta do governo federal de recriar a CPMF, o antigo imposto do cheque, não poderia ter tido pior repercussão. É uma medida impopular e estabanada, por mais que seja vista pela eqiupe econômica da presidente Dilma como essencial para equilibrar o orçamento de 2016.

O que mais me incomoda, quando se discute de onde tirar dinheiro para financiar a saúde, é a dificuldade do governo de revelar suas intenções com todas as letras. A volta da CPMF é sempre uma carta escondida na manga, mas há um mês nem o ministro da Saúde Arthur Chioro era capaz de assumi-la publicamente.

Perguntei isso a ele, objetivamente, durante o programa Roda Viva, da TV Cultura.

ÉPOCA: Como resolver a equação do subfinanciamento da saúde? O senhor pensa em aumentar impostos ou retirar dinheiro de outras pastas?

A resposta foi aquele “nem sim, nem não” que em nada contribui para a informação dos brasileiros.

Arthur Chioro: Acho fundamental que a sociedade brasileira, o Congresso Nacional façam esse debate. O que está colocado para a população brasileira é uma definição para hoje, mas é para os próximos anos. É para o futuro. Que sistema de saúde nós vamos ter para uma população que está envelhecendo cada vez mais. Isso é concreto. É decisivo que a sociedade brasileira discuta. Qual é a fonte, a composição, isso é um debate que a sociedade tem que fazer. O Congresso tem que fazer.

Cristiane, só para te dar um exemplo: quando a CPMF foi extinta em 2007, se ceifou R$ 40 bilhões. Se a gente continuasse tendo a CPMF no orçamento do Ministério da Saúde, nós teríamos acumulado entre 2008 e o ano passado mais de R$ 350 bilhões. Um grupo de oposição, para fazer birra com o presidente, Lula extinguiu a CPMF, mas fez um grande crime de lesa-pátria contra a própria população brasileira.

Augusto Nunes: Mas o povo é contra a CPMF...

Arthur Chioro: Veja bem, Augusto. Eu não estou aqui fazendo a defesa da CPMF. Acho que temos que discutir o modelo de financiamento. Boa parte da classe D, E e mesmo da classe C estava livre da cobrança de CPMF. Na verdade, o que a gente tem são setores importantes da nossa economia que sabem que, no caso da CPMF (e o professor Adib Jatene sempre levantava isso), há a possibililidade do rastreamento das transações ilegais, da sonegação fiscal. Isso foi um dos motivos centrais, muito pouco debatido, para que se enfrentasse no Congresso Nacional – sem contar a luta política, que era contra o Lula, mas foi feita contra o Brasil, contra o SUS – que levou à extinção da CPMF. (...) O que precisamos discutir é se a sociedade quer ou não quer pagar um sistema universal de saúde.

(Confira o Roda Vida – o trecho citado está a partir de 29 minutos)


Essa discussão é urgente, mas precisa ser feita com total clareza de propósitos. Se queremos um sistema de saúde justo e de qualidade, precisamos sair do plano da politicagem e elevar a discussão ao nível técnico. Não dá para jogar o abacaxi do aumento de tributos sobre a população, de uma hora para outra, sem assumir que, com ou sem CPMF, a ideia do SUS universal (para todos) e integral (tudo para todos) é uma utopia diante da porcentagem do PIB que o Brasil aplica em saúde.

Muitos estudiosos da saúde pública sabem disso. Na semana passada, ouvi mais uma especialista falar sobre o tema durante um debate realizado na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. “Não é possível dar tudo a todos”, afirmou Lenir Santos, coordenadora do curso de Direito Sanitário da Universidade Estadual de Campinas. “Nenhum país que tem sistema de saúde universal oferece tudo a todos. É preciso definir os limites da integralidade. Escolher o que vamos garantir a todos”, disse.

Nenhum governo quer assumir o ônus político de dizer que não é possível dar tudo (toda e qualquer tecnologia) a todos. Mais cedo ou mais tarde, o Brasil terá de fazer escolhas. Vai precisar estabelecer um pacote de serviços, medicamentos e outras tecnologias e definir que todos os brasileiros – todos mesmo – terão acesso aos mesmos recursos.

Vai ser impopular, vai doer, mas é a única forma madura de fazer o SUS avançar em direção à qualidade e à justiça na distribuição de recursos. Achamos que a saúde pública funciona melhor no Reino Unido, na França e no Canadá? Pois é. Esses países fazem escolhas, em vez de fingir que o orçamento é um saco sem fundos capaz de prover tudo o que os cidadãos precisam.

No Brasil, a saúde pública vai de mal a pior por duas razões: má gestão e orçamento curto. O país aplica 9,7% do PIB em saúde. É pouco. Desse total, apenas 4,6% correspondem ao investimento público. A maior parte dos gastos é feita diretamente pelas famílias e pelas empresas que contratam planos de saúde.

Não é verdade que existe dinheiro de sobra e só não recebemos bons serviços porque ele é roubado descaradamente. Convivemos com desvios criminosos e aberrações administrativas, mas, ainda assim, o dinheiro que a sociedade brasileira investe em saúde não é suficiente para oferecer o mítico “tudo a todos”.

O SUS continuará cheio de desigualdades enquanto não aceitarmos essa verdade inconveniente. É preciso conhecer e aceitar a realidade até mesmo para entender que soluções emergenciais como Mais Médicos, Mais Especialidades, Mais Isso e Mais Aquilo são como curativos colados sobre ferimentos infectados. Para curar de verdade o sistema, o melhor a fazer é lavá-lo e deixá-lo exposto e bem arejado.

Falar em volta da CPMF sem a devida transparência é cutucar a ferida. Principalmente depois de uma experiência traumática. Antes da extinção do imposto, em 2007, o Brasil viu boa parte dos recursos ser desviada para outros fins. Acreditar que, desta vez, o dinheiro seria totalmente aplicado em saúde é persistir no pensamento mágico que atrasa o país.





Por Cristiane Segatto

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