sábado, 18 de outubro de 2014

Conversa de segundo turno



Tenho amigos e interlocutores no PT. Os amigos respeitam e calam. Os outros me pedem calma. Acham que estou reagindo com o fígado, por mágoa. Digo a eles que não é mágoa, é indignação. Balançam a cabeça, condescendentes. Ainda têm esperança em minha conversão. Cada voto vale a paciência dos militantes.

Sei que essa indulgência com minha rebeldia tem prazo de validade. Assim que desistirem, empurram-me ao inferno sem piedade.

Quando digo que Marina Silva foi caluniada pelo PT da forma mais torpe, atribuem a selvageria ao marqueteiro. Se reajo cobrando responsabilidades, transferem-na à natureza aguerrida da eleição. Quando afirmo que o governo federal endossou a repressão criminosa aos protestos, vacilam, mas apontam para o futuro: o segundo mandato será melhor.

Se questiono o otimismo, lembrando a proposta da candidata de que as Forças Armadas participarão dos comandos locais da segurança, hesitam, mas justificam: isso é retórica eleitoral, o que vale é a prática. Quando digo que a prática tem sido lamentável, voltam a acenar com um futuro diferente.

Ao afirmar que a desigualdade parou de diminuir, respondem com a crise internacional e a estabilização do emprego. Contestam e dizem que estou hipnotizado pelo discurso terrorista da mídia se digo que o pleno emprego cederá ante a estagflação. Se acuso a regressão na área ambiental, mudam de assunto.

Se aponto a cumplicidade com ameaças a indígenas e seus territórios, atribuem os recuos à garantia da governabilidade. Quando falo da manutenção dos velhos métodos políticos, dizem que a presidente tentou estimular uma reforma política, mas que não dependia dela e, afinal, esse é o custo do poder.

Quando pergunto para que o poder se nada avança, respondem com o futuro de conquistas sociais extraordinárias. Se falo da corrupção na Petrobras, dizem que herdaram a peste dos governos anteriores. Se lembro que já são 12 anos de PT, atribuem o escândalo a maquinações para desmoralizar a empresa e fazê-la presa fácil para a privatização.

Quando cito outras instâncias de poder aparelhadas e sublinho o dano causado aos movimentos sociais pela cooptação, respondem com hostilidade, afirmando que meu olhar está viciado pelo ingênuo encantamento com as manifestações de 2013.

Quando, finalmente, afirmo que o governo Dilma foi medíocre, mostram-se dispostos a aceitar, mas questionam qual poderia ser a alternativa. Digo-lhes, então, para seu desgosto: haveria algo mais conservador e medíocre do que defender a mediocridade conservadora?

Resta-lhes a bala de prata: o medo. A oposição arruinará os programas sociais e aprofundará as desigualdades. Pondero: e se o compromisso de manter os programas for para valer? Duvidam: a política econômica neoliberal os destruirá.

Argumento, lembrando que Lula governou com o tripé neoliberal e com Henrique Meirelles no Banco Central. E, assim, arrumou a casa para investir nos programas sociais. Mas Lula é Lula, proclamam. Minha capacidade de acompanhar o raciocínio de meus interlocutores esgota-se nesse ponto, coincidindo com o limite da tolerância que eles se esforçam por estender.

Percebendo que o voto está perdido, confessam o diagnóstico letal: “Você não passa de um neoliberal”.



Por Luiz Eduardo Soares, cientista político e antropólogo. É autor de Elite da tropa (Objetiva) e deTudo ou nada (Nova Fronteira). Foi secretário nacional de Segurança Pública (governo Lula).

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